As nove sinfonias de Beethoven em três dias e cinco concertos
Obras-primas da música são cada vez mais mutiladas, para que uns nacos sejam acessíveis a ouvintes em estado de desatenção crônica. A própria noção de obra é abalada quando retalhos são espalhados por todos os cantos, obstruindo a escuta de peças longas e orgânicas.
Beethoven, por exemplo, compôs suas nove sinfonias no primeiro quarto do século 19. Renovou a música clássica; fez a trilha sonora da Revolução Francesa; produziu a Marcha Fúnebre do herói que veio a trair o novo tempo, Napoleão. Foi audaz, piegas, sublime —complexo.
A "Quinta" é a sinfonia mais conhecida no planeta. Foi ela que tornou Beethoven o Shakespeare, o Michelangelo da música. E o que se lembra dela? As quatro pancadas iniciais, se tanto: tchan-tchan-tchan-tchaaan!
Por isso, foram admiráveis os cinco concertos com as nove sinfonias, regidas por Roberto Minczuk, no Theatro Municipal de São Paulo, da sexta-feira ao domingo passado. Em vez da criação de Adão, a Capela Sistina inteira. O ser-ou-não-ser deu lugar às tragédias shakespearianas todas.
A sinfonia era a forma por excelência da música. Seu caráter laico e orquestral, com vistas às salas de concerto burguesas, se contrapunha às peças sacras, encomendadas pela Igreja. Contrastava também com a música de câmara, a dos salões da aristocracia.
A sinfonia tinha quatro partes. A primeira expunha o tema. A segunda, o adágio, era leve. A terceira ecoava a dança da aristocracia, o minueto. A quarta, mais ou menos ruidosa, concluía. Com Beethoven, a forma muda de figura.
O adágio fica sisudo. Para se afastar do Antigo Regime, o minueto é trocado pelo scherzo. A "Nona", composta 25 anos depois da "Primeira", já nem é bem uma sinfonia. Impura, deságua no canto coral da apoteótica "Ode à Alegria", escrita por Schiller.
Ao ouvir as nove peças em seguida, intui-se que as mudanças na forma musical indicam alterações de outra ordem —as na política, entendida como arena de luta, de esperanças e de desilusões sem fim, das massas em movimento.
A sequência à qual as nove sinfonias se referem é deflagrada pela queda da Bastilha, em 1789. A ela seguem-se a República, a execução do rei, o terror, a reação termidoriana, a restauração monárquica e a derrocada de Napoleão, em Waterloo. A Europa virou de ponta cabeça.
Mas as terras germânicas continuaram presas no passado. É de um ponto de vista reflexivo, portanto, mais de modernização conservadora do que de progresso efetivo, que as sinfonias expressam o tumulto europeu. Nessa chave, as sinfonias significativas são a "Terceira", a "Sexta" e a "Nona".
O título da "Terceira", "Bonaparte", era homenagem ao general à frente do Exército revolucionário. Beethoven o mudou para "Eroica" quando ele se sagrou imperador. E manteve a marcha fúnebre, alerta de que um dia Napoleão morreria.
A "Sexta" é uma sinfonia regressiva, pois que se refugia numa antiguidade idílica. Daí o seu título: "Pastoral". Apelativo e virtuoso, o compositor faz com que a orquestra imite pássaros e uma tempestade.
É sintomático que esse buquê de efeitos feéricos tenha sido a primeira sinfonia de Beethoven tocada no Brasil, em 21 de outubro de 1843. D. Pedro 2º, conservador bisonho, gostou tanto dela que a fez repetir dias depois num "concerto popular" que, magnânimo, outorgou à malta.
Revolução e restauração são inextricáveis na "Nona". Bakunin, o carbonário, disse em 1848 que "se toda a música puder desaparecer na conflagração mundial que se aproxima, devemos arriscar nossas vidas para preservar essa sinfonia". Já Furtwängler a regeu para homenagear Hitler, em 1942.
Antes de serem massacrados pelos tanques da ditadura, em 1989, estudantes chineses a tocaram em alto-falantes na praça da Paz Celestial. Bernstein a regeu quando o Muro de Berlim foi derrubado, no mesmo ano. O último movimento, a "Ode à Alegria", é o hino oficial da União Europeia.
Wagner saudou na "Nona" a "arte do futuro" —a peça recorria à massa sonora coral e apelava à mística da irmandade alemã. Às turras consigo mesma, ela combina sentimentalismo nacional com aspiração universal à igualdade e à liberdade. Para Adorno, a sinfonia sintetiza contradições do Iluminismo: apoia os seus sonhos mesmo sabendo que são impossíveis.
As sinfonias de Beethoven têm o que dizer ao Brasil de hoje? Ou são divertimento de diletantes? Depois de ouvir a marcha fúnebre, no sábado, quem saía do Municipal para traçar uma esfiha caía na Marcha da Maconha. No domingo, dava de cara com o Festival Lula Livre.
Mario Sergio Conti
Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".
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