Nada nos une, e o melhor a fazer é assumir que nada realmente nos une
Há países que parecem lutar de forma desesperada contra movimentos inevitáveis. Eles procuram adiar de todas as maneiras a confrontação com aquilo que romperia uma imagem de si construída à base de muito desconhecimento, silenciamento e violência. No entanto, chega uma hora em que tal imagem se quebra, que as narrativas tradicionais não dão mais conta de nada.
Desde as eleições de 2014, era óbvio que o Brasil tinha explicitado o fato de ser um país que caminhava para os extremos. As dinâmicas de conquista do centro como condição de governabilidade, tão típicas da Nova República, tendiam paulatinamente a sair de cena. Nesses últimos cinco anos, não houve fato a desmentir tal tendência. Enquanto alguns clamavam por “diálogo”, outros haviam compreendido que não havia nenhuma gramática comum que possibilitasse qualquer forma de “diálogo” possível.
Nada nos une e, nessas situações, o melhor a fazer é assumir que nada realmente nos une, a não ser a partilha do mesmo território. Contrariamente ao que os dados oficiais enunciam, não falamos a mesma língua.
Essa ausência de um campo comum é a expressão mais bem acabada na qual apenas o acirramento das diferenças pode produzir algum acontecimento real. Domingo passado, os apoiadores do desgoverno de plantão mostraram claramente seus rostos. Eles não temeram deixar explícita a gramática singular que lhes é própria.
Nela, “luta contra a corrupção” é algo que não diz respeito aos filhos do presidente, seu motorista e seu partido. Isso não deveria nos estranhar, já que estamos a falar de uma base social exímia em fazer juízos morais definitivos enquanto sonega impostos e espolia direitos trabalhistas de seus “empregados”.
Nela, “amor a pátria” gritado por corpos vestidos com camisa de time de futebol é outro nome para desprezo por aqueles que essa “pátria” violentou sistematicamente para se afirmar (como índios e negros). “Segurança” é sinônimo de “extermínio” e de “execução”.
Pois ninguém estava lá minimamente incomodado com policiais que executam 13 pessoas a facada (como ocorreu no morro do Fallet) ou com 80 tiros. Nem com governadores que saem de helicóptero para abater sua própria população. Ao contrário, eles agora são louvados exatamente por isso.
Esse setor da população está em uma consolidação sem retorno de suas tendências militaristas e, em vários casos, abertamente fascistas. Eles assumiram abertamente práticas negacionistas e não veem problemas em elevar torturadores a heróis.
Há de se perguntar quanto tempo mais precisaremos esperar para aparecer um Comando de Caça aos Comunistas e grupos paramilitares. Seria irresponsável não reconhecer que radicalizações desta natureza, levando em conta a história brasileira, são possibilidades. Contrariamente ao que alguns acreditam, as convocações governistas de seus apoiadores sempre serão prontamente respondidas.
Nesse ponto, o Brasil segue uma tendência mundial de desrecalque dos setores mais regressivos da vida social, animados por aqueles que apostam em um vale tudo para conseguir passar suas agendas econômicas que garantirão mais um ano de lucros recordes para o sistema bancário e seus rentistas de plantão.
O caminho a ser feito agora não passa por nenhuma forma de “defesa”, por luta pela “preservação” de algo. Passa pela compreensão de contarmos apenas com a força do nosso dissenso e com nosso desejo de ruptura.
Por questões de fechamento de edição, escrevo sem saber quais foram os resultados das manifestações desta quinta. Mas agora, há de se preservar uma força constante e comum, com suas paralisações, greves e mobilizações. Até que um novo país nasça da consciência de seus conflitos e antagonismos.
O Brasil sonhou com pactos e conciliações infinitas. Agora, ele acorda diante da tarefa de assumir para si uma colisão que ele fez de tudo para apagar.
Vladimir Safatle
Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.
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