Brisa de outono no circo de espantos de Brasil
Os mais jovens desconhecem que os jânios sempre estiveram por aqui e que os cronistas dedicavam-lhes o mais silencioso desprezo.
O prefeito a ser impichado evidentemente não sabe, mas havia nos jornais do Rio uma tradição de delicadeza, como o banho de mar à fantasia, o refresco de groselha na Colombo e o “a gente precisa se ver”. Era a crônica de outono.
Sempre que o sol atingia o equinócio de março um cronista ilustrava seu espaço no jornal com um texto de folhas líricas e anunciava o minuto exato em que, andando na Praia do Flamengo, ele sentiu ontem pela manhã um vento mais frio batendo na pele e, pronto, tinha chegado o outono da elegância e distinção. À noite as moças já estariam usando um casaquinho leve.
O Brasil tinha as mesmas crises de hoje, eram apenas outros os palhaços sem graça que assombravam este Cirque de Soleil de lona eternamente cheia de furos e fungos. A crônica sobre o outono nem piscava para as aporrinhações de autoridades chinfrins. Ela era uma joia carioca, um acontecimento do mesmo significado que o gole para o santo ao pé do balcão, o belo tipo faceiro no bonde e o travesseirinho de areia feito com os pés. Todos juntos, mais o aplauso ao por do sol, mais o surdo de marcação da Mangueira, e desenhava-se uma cidade de sonhos. Os cronistas narravam esta felicidade.
Impresso nos jornais, o texto fino de saudação ao outono provocava nos leitores um estupor de desfalecimento e uma súbita vontade de levitar sobre as árvores. Essas sensações vinham daquela mágica de o cronista fazer parecer tudo muito fácil, de juntar palavras atrás de palavras e, assim como quem não quer nada, fazê-las passear com o leitor pelas alamedas da Praça Paris. Dava para sentir batendo no peito os primeiros momentos daquela brisa gentil.
Os mais jovens vivem 2019 com a sensação de que o precipício nunca esteve tão aos pés dos sobreviventes desta maracangalha. Desconhecem que os jânios sempre estiveram por aqui e que os cronistas, não obstante, uma expressão que destarte eles jamais escreveriam, dedicavam-lhes o mais silencioso desprezo. “As amargas não”, dizia um deles; as notícias graves menos ainda — porque não são crônicas.
Os cronistas preferiam os assuntos comuns, a viúva de maiô preto com o filho na praia, o amor que acaba para recomeçar outro —e acima de tudo, em uníssono, agradeciam todo março a chegada do outono. Eram os responsáveis pelo gesto fundamental de abrir as janelas do jornal e, em meio às tragédias, às boçalidades dos políticos, deixar que o sopro suave dos pequenos acontecimentos arejasse a existência dos leitores. No caso do outono, esses cronistas registravam uma certa melancolia nas folhas que caíam, secas, mas em geral soavam aliviados com a estação. Ela se fazia necessária, um momento de recolhimento depois das aflições desvairadas do verão.
O outono está em cartaz há duas semanas e, pela primeira vez desde que em 1850 alguém publicou uma crônica a respeito, ainda não mereceu um registro em louvor à sua gloriosa missão de pacificar os sentidos. Diante da guerra, o escritor Joseph Conrad cunhou a expressão “o horror! o horror!”. Diante dos últimos cem dias, o Brasil é só “o espanto! o espanto!” — e a escalada de vexame, xixi e grosseria deixou o país pesado. Ninguém conversa, é tudo exclamação. A crônica também se pautou por esses pontos de gravidade, e esqueceu de mudar de assunto. O outono é uma oportunidade. Não reforma a previdência, não prende em segunda instância. É um tempo de trégua. Seu sopro discreto sugere, assim como quem não quer nada, verbos amenos para substituir esta monstruosa crônica de insanidades.
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