Almanaqueiras: ou não queiras.

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terça-feira, 9 de abril de 2019

os jânios sempre estiveram por aqui

Brisa de outono no circo de espantos de Brasil 

Joaquim Ferreira dos Santos



Os mais jovens desconhecem que os jânios sempre estiveram por aqui e que os cronistas dedicavam-lhes o mais silencioso desprezo.

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O prefeito a ser impichado evidentemente não sabe, mas havia nos jornais do Rio uma tradição de delicadeza, como o banho de mar à fantasia, o refresco de groselha na Colombo e o “a gente precisa se ver”. Era a crônica de outono.

Sempre que o sol atingia o equinócio de março um cronista ilustrava seu espaço no jornal com um texto de folhas líricas e anunciava o minuto exato em que, andando na Praia do Flamengo, ele sentiu ontem pela manhã um vento mais frio batendo na pele e, pronto, tinha chegado o outono da elegância e distinção. À noite as moças já estariam usando um casaquinho leve.

O Brasil tinha as mesmas crises de hoje, eram apenas outros os palhaços sem graça que assombravam este Cirque de Soleil de lona eternamente cheia de furos e fungos. A crônica sobre o outono nem piscava para as aporrinhações de autoridades chinfrins. Ela era uma joia carioca, um acontecimento do mesmo significado que o gole para o santo ao pé do balcão, o belo tipo faceiro no bonde e o travesseirinho de areia feito com os pés. Todos juntos, mais o aplauso ao por do sol, mais o surdo de marcação da Mangueira, e desenhava-se uma cidade de sonhos. Os cronistas narravam esta felicidade.

Impresso nos jornais, o texto fino de saudação ao outono provocava nos leitores um estupor de desfalecimento e uma súbita vontade de levitar sobre as árvores. Essas sensações vinham daquela mágica de o cronista fazer parecer tudo muito fácil, de juntar palavras atrás de palavras e, assim como quem não quer nada, fazê-las passear com o leitor pelas alamedas da Praça Paris. Dava para sentir batendo no peito os primeiros momentos daquela brisa gentil.

Os mais jovens vivem 2019 com a sensação de que o precipício nunca esteve tão aos pés dos sobreviventes desta maracangalha. Desconhecem que os jânios sempre estiveram por aqui e que os cronistas, não obstante, uma expressão que destarte eles jamais escreveriam, dedicavam-lhes o mais silencioso desprezo. “As amargas não”, dizia um deles; as notícias graves menos ainda — porque não são crônicas.

Os cronistas preferiam os assuntos comuns, a viúva de maiô preto com o filho na praia, o amor que acaba para recomeçar outro —e acima de tudo, em uníssono, agradeciam todo março a chegada do outono. Eram os responsáveis pelo gesto fundamental de abrir as janelas do jornal e, em meio às tragédias, às boçalidades dos políticos, deixar que o sopro suave dos pequenos acontecimentos arejasse a existência dos leitores. No caso do outono, esses cronistas registravam uma certa melancolia nas folhas que caíam, secas, mas em geral soavam aliviados com a estação. Ela se fazia necessária, um momento de recolhimento depois das aflições desvairadas do verão.

O outono está em cartaz há duas semanas e, pela primeira vez desde que em 1850 alguém publicou uma crônica a respeito, ainda não mereceu um registro em louvor à sua gloriosa missão de pacificar os sentidos. Diante da guerra, o escritor Joseph Conrad cunhou a expressão “o horror! o horror!”. Diante dos últimos cem dias, o Brasil é só “o espanto! o espanto!” — e a escalada de vexame, xixi e grosseria deixou o país pesado. Ninguém conversa, é tudo exclamação. A crônica também se pautou por esses pontos de gravidade, e esqueceu de mudar de assunto. O outono é uma oportunidade. Não reforma a previdência, não prende em segunda instância. É um tempo de trégua. Seu sopro discreto sugere, assim como quem não quer nada, verbos amenos para substituir esta monstruosa crônica de insanidades.

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