Almanaqueiras: ou não queiras.

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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

O penhor dessa igualdade

Se crianças cantando o hino nos inspiram, já pensou se elas o entendessem? 

Sérgio Rodrigues


Que a garotada cante na escola o hino nacional, símbolo oficial da República, me parece normal, provavelmente até desejável. Em meus tempos de estudante não me limitei a ele: também o hino da bandeira e o da Independência, este composto por d. Pedro 1º, frequentavam nosso repertório.

Estávamos na ditadura militar, que gostava de patriotismo e de patriotada, mas não me ficou nenhum trauma. Em defesa contra a chatice, trocávamos a letra do hino da Independência: "Japonês tem quatro filhos...".

O hino nacional já me marejou os olhos muitas vezes, o que é próprio do gênero. Até o hino dos outros tem poder: quem não se arrepia quando o bar inteiro canta A Marselhesa para os nazistas em "Casablanca"? Na história da rede de afetos entre ouvido, coração e hino, introduziu-se esta semana um elemento grotesco, efeito que o ministro Ricardo Vélez Rodríguez tem demonstrado apreciar.

Já submetida a recuo parcial, e depois a recuo total, a carta em que ele convoca as escolas a filmar alunos cantando o hino e termina com o slogan de Bolsonaro tem ecos fascistas óbvios.

Tomara que o ministro não consiga perturbar a relação das novas gerações com o hino. Arrepios futuros dependem dela, e não me surpreenderia que a própria ideia de Brasil, em alguma medida, também. Porém...

Tendo surgido o assunto, convém reconhecer que nosso hino é estranho. A escola poética que o moldou, o parnasianismo, coqueluche na época, ditou uma letra artificiosa e rebuscada até o ponto de ser incompreensível.

Quer dizer: estamos falando de um "símbolo nacional" que não entendemos direito, que exclui de seu círculo de sentido o povo que diz representar. Acaba, assim, por simbolizar bem mais do que pretendia.

Palavras raras e fraseado cheio de inversões fazem da letra de Osório Duque-Estrada —vencedora de um concurso em 1909 e oficializada em 1922— um exemplo do pernosticismo bacharelesco e excludente que marca nossa cultura oficial. Como escreveu Graciliano Ramos em "Memórias do Cárcere": "Para que meter semelhante burrice na cabeça das crianças, Deus do céu?"

Calma, leitor patriota: Graciliano e eu somos tão brasileiros quanto qualquer um. Não acho que isso deva impedir ninguém de criticar um exemplar curioso do gênero hino, que além do mais só se tornou oficial há menos de um século.

Para começar, como é longo! A melodia de Francisco Manoel da Silva é herança da monarquia —foi composta em 1831 para celebrar, com outra letra, a abdicação de Pedro 1º— e não é bem marcial. Falta-lhe o convite direto à ação e à glória. Nosso hino é uma peça colorida e loquaz.

A gravidade típica dos hinos, os acordes que ascendem com segurança solene, a violência gráfica contra o inimigo —nada disso existe na canção que o Brasil sacramentou no ano em que a Semana de Arte Moderna pregava em seu estilo, para sempre, uma etiqueta de brega. O hino já nasceu velho.

Não sejamos injustos. Um ponto a favor da peça é justamente seu pacifismo. "Verás que um filho teu não foge à luta/Nem teme quem te adora a própria morte", o mais perto que chega da guerra, é um brado viril —de defesa, não de ataque— afogado em gemidos de apaixonado.

Nossos bosques, o sol da liberdade em raios fúlgidos, o Cruzeiro, berço esplêndido, verde-louro, terra mais garrida, no teu seio mais amores. Louve-se o amor risonho e límpido do poeta por seu país. Mas que seria melhor se os brasileiros entendessem, seria.

Sérgio Rodrigues
Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”.

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