Se políticos prometem tudo e dizem barbaridades, que peso têm as palavras?
Acompanhada pelo repórter Ricardo Balthazar enquanto assistia ao debate presidencial de domingo, a manicure Maria do Socorro Rodrigues dos Santos verbalizou o sentimento de milhões de eleitores: "Eu queria acreditar que eles podem fazer o que estão prometendo".
A manicure Maria do Socorro, 44, e seu filho Pedro, 25, assistem ao debate na TV Gazeta neste domingo (9) em sua casa na zona oeste de São Paulo - Rafael Hupsel/Folhapress
Dois dias depois, o STF (Supremo Tribunal Federal) rejeitou por 3 a 2 a denúncia da Procuradoria-Geral da República contra Jair Bolsonaro por crime de racismo. Ficou combinado que declarações como a de que, pesando "sete arrobas", "nem para procriador" os quilombolas "servem mais" são protegidas pela liberdade de expressão.
Os dois episódios são muito diferentes em peso, consistência e aroma, mas se encontram na esquina da poesia com a filosofia. Dali se descortina uma ampla vista para a reflexão sobre a linguagem.
Qual é a natureza das palavras? Elas são só fumaça e ilusão ("falar é fácil") ou têm alguma substância, lastro real? Na formulação famosa de Shakespeare, "o que há num nome?"
Se a questão fosse simples, não desafiaria há milênios as melhores cabeças da espécie. Como a de Sócrates, o filósofo grego real ou pelo menos o personagem que atende por esse nome no controverso diálogo "Crátilo", de Platão, marco fundador da filosofia da linguagem.
Ali o mestre da dialética, com ironia, examina, rejeita ou tenta conciliar duas visões opostas sobre a linguagem: a de que as palavras são arbitrárias, meras convenções, defendida por Hermógenes; e a de que elas espelham a natureza das coisas que nomeiam, tese de Crátilo.
Mas voltemos ao presente. Maria do Socorro tem bons motivos para desconfiar, sobretudo depois de uma campanha recordista em desonestidade como a de 2014, que palavras de políticos são cheques sem fundo: o eleitor vai descontá-los e sai de mãos vazias.
Isso levou à recente difusão, no vocabulário da ciência política, do conceito de "estelionato eleitoral", crime que não consta do Código Penal (ainda bem, pois ampliar a já exagerada judicialização da política seria má ideia).
Racismo, sim, está na lei. Será então que a decisão de rejeitar a denúncia contra Bolsonaro significa que qualquer um pode não só prometer o que quiser, mas, tendo bons pistolões, dizer a barbaridade discriminatória que bem entender —inclusive se referindo a seres humanos com um vocabulário reservado a gado? Palavras não geram consequência alguma?
Não é bem assim. O Supremo parece ter tomado uma decisão ancorada nos fundamentos iluministas da democracia ao proteger o princípio da liberdade de expressão. Este precisa valer sempre, inclusive para aquilo que gera repulsa em parte —pequena ou majoritária, não importa— da sociedade. Trogloditismo moral não é crime.
Mas o quadro não é pacífico. Esse entendimento, que podemos chamar de liberal, vem sendo desafiado nos últimos tempos por uma ideia politicamente correta: a de que, sendo veículos de iniquidades, as palavras devem ser criminalizadas como se atos fossem, pois não haveria diferença entre violência simbólica e violência real.
De certa forma, o embate do "Crátilo" está de volta: a linguagem é tão arbitrária que relativiza qualquer ideia de verdade ou diz a verdade tão naturalmente que se confunde com o mundo que nomeia?
Acho que Sócrates apontaria seu caráter ambíguo e falho. Palavras são permanentemente julgadas, desafiadas, testadas, aprovadas e reprovadas. Mesmo que não no tribunal, as consequências acabam por vir.
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