O físico Sérgio Mascarenhas cria diagnóstico não invasivo que pode impactar 1 bilhão de pessoas
"Uma doença maldita virou bendita.” É assim que o físico Sérgio Mascarenhas descreve uma hidrocefalia tratada inicialmente como mal de Parkinson. “Quando fiquei doente, abriram a minha cabeça para fazer o diagnóstico. Resolvi que precisava melhorar isso na saúde, que era muito atrasado.”
Isso faz 12 anos. “É arqueologia”, diz o senhor de 90 anos que carrega no crânio uma válvula para evitar acúmulo de água e inchaço que podia comprometer suas funções cerebrais.
“Na vida, você tem duas atitudes básicas. A primeira é a indignação. A segunda, se conformar. Estava inconformado e comecei a trabalhar ao sair do hospital.”
Desde então, o pesquisador e professor aposentado da USP, ex-presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), usa o cérebro privilegiado para desenvolver a tecnologia médica não invasiva.
“Tive a sorte de pegar coisas que aprendi na engenharia, na física e na química para conseguir fazer um medidor da pressão intracraniana (PIC) sem furar o crânio.”
Registrou patentes nos Estados Unidos e na Europa e pretende tornar o novo método um novo sinal vital tão corriqueiro como a medição da pressão arterial.
Para atingir o objetivo, o cientista brasileiro fundou e 2014 a Braincare, ao lado de colaboradores e ex-alunos.
Três anos depois, a startup, que une ciência, tecnologia e impacto social, foi uma das 7 entre 500 empresas do mundo a serem escolhidas para aceleração na Singularity University.
O centro de tecnologias exponenciais do Vale do Silício, na Califórnia, aposta que a descoberta científica do brasileiro teria potencial para ganhar escala e impactar 1 bilhão de pessoas nos próximos dez anos.
IDEIA SIMPLÓRIA
Mascarenhas explica como tudo começou. “O neurocirurgião que me operou disse que não tinha técnica não invasiva disponível, mas eu sabia da engenharia, onde era professor, que se pode ver a deformação de uma viga com um chip especial que mede deformações muito pequenas.”
O mestre diz não se tratar de uma descoberta de grandes gênios, tipo Albert Einstein. “Era simplória até.”
O cientista aposentado continua dando aulas de pós-graduação, orientando mestrandos e doutorandos em várias instituições. “É um suicídio me aposentar.”
Virou empreendedor social, junto com meia dúzia de sócios, entre eles dois dos quatro filhos e dois ex-alunos da engenharia responsáveis pela modelagem do negócio.
Plinio Targa, por exemplo, virou sócio e diretor-executivo da Braincare há dois anos. Deixou a Ernst Young e ganhos de seis dígitos mensais. Aceitou o convite de Carlos Frederico Bremer, colega de faculdade que vive em Atlanta nos Estados Unidos, para investir no produto criado pelo ex-professor de ambos.
“É uma história que começa num acaso maravilhoso e acaba na quebra de um paradigma de 200 anos na medicina”, resume Targa.
O que o físico brasileiro fez foi provar que o cérebro não é uma estrutura rígida e criar um mecanismo para detectar esse movimento.
“Ele desenvolveu um método de monitoramento que permite só encostando um sensor na cabeça mostrar um perfil da complacência cerebral”, explica o diretor-executivo, sobre o aparelho, que cabe na palma da mão, ligado a uma cinta em volta do crânio.
MODELO DE NEGÓCIO
Era preciso também botar a cabeça para funcionar e achar formas de fazer do achado um instrumento da medicina.
“O professor nos pediu ajuda para transformar a descoberta numa oferta para a sociedade, mas não sabia como fazer”, relata Targa.
Inicialmente, a ideia era montar uma empresa de equipamentos médicos para fabricar monitores, sensores.
Tudo mudou após dois meses no Vale do Silício, quando os parceiros de Mascarenhas entraram em contato com a fronteira da inovação em saúde.
Logo no primeiro dia dentro da Nasa, em Mountain View, onde fica a sede da Singularity, Targa começou a tecer o futuro da Braincare.
Depois da troca de 2.500 emails, 110 reuniões e conexão com uma poderosa rede de mentores nos quatro cantos do mundo. ”Criamos ali uma convicção de que estamos diante de uma ruptura gigante.”
Decidiram vender um serviço e não um equipamento médico. “Transformamos a descoberta em um software e disponibilizamos um sensor wireless para leitura do sinal vital. Desmaterializamos tudo para deixar a tecnologia acessível”, explica Targa.
Com o propósito de atingir o maior número de pessoas em um menor tempo, apostaram em um aplicativo e inteligência na nuvem.
O modelo de negócios é disponibilizar a licença de uso do sensor e a leitura dos dados para hospitais.
NA ROTINA
O primeiro a utilizar a tecnologia em sua rotina será o Hospital Sírio Libanês, em São Paulo.
O método Braincare de medição da pressão intracraniana poderá ser usado para auxiliar o diagnóstico em casos de hidrocefalia, AVC, doenças hepáticas e renais, pré-eclâmpsia, hipertensão, meningite e trauma.
Outras duas redes hospitalares no Brasil estão em processo de assinatura de contrato com a Braincare, que já disponibiliza a tecnologia para pesquisa em outros centros de saúde no país e no exterior.
As entidades pagam uma licença, com assinatura mensal de R$ 3.000. “Não cobramos por número de utilização do sensor, pois antes de ser um negócio, temos um compromisso gigantesco com a humanidade”, explica o diretor-executivo.
A Braincare está captando US$ 5 milhões junto a investidores brasileiros para começar a ganhar maior escala.
“Vamos perpetuar um sinal vital com uma tecnologia que vai salvar vidas para sempre”, empolga-se o executivo.
O diretor-executivo e o fundador da Braincare tiveram um encontro emocionante com Maya, 6, que nasceu prematura, desenvolveu hidrocefalia e se tornou uma das primeiras pacientes beneficiadas pela tecnologia no Brasil.
Em outubro de 2017, em sua 22a internação e diante do impasse de mais uma cirurgia, a neurocirurgiã da garotinha decidiu usar o método criado por Mascarenhas. Ressonância magnética não era opção nem o método tradicional de inserir um sensor por meio de cirurgia no crânio da menina para fazer o diagnóstico.
Passou-se a monitorar a pressão interna do crânio de Maya com a tecnologia Braincare na UTI e depois em casa.
O caso que mostra os ganhos em velocidade e facilidade de diagnóstico, com melhora na qualidade de vida do usuário, ilustra documentário sobre a startup, a ser lançado até o fim do ano.
Mascarenhas se vale de dois clichês para resumir a história de sucesso. “Você não faz nada sozinho. Trabalhar em ciência, tecnologia, educação, inovação tem que ser com equipe. Sempre tive alunos maravilhosos.”
E pede desculpa para citar o que considera um outro clichê: “Professores bons são aqueles que têm alunos melhores que eles. Se não tiver, falhou, não fez a árvore de 800 anos como em Cambridge, na Inglaterra, com Newton, Darwin, a descoberta do DNA.”
O NOBEL E O FARMACÊUTICO
A árvore de Mascarenhas tem várias ramificações frutíferas.
Um dos galhos é o próprio neurologista que fez a análise do cérebro do professor. O sonho dele era trabalhar com ressonância magnética, que ainda não existia no Brasil. “Na época, eu estava na Itália, dirigindo um curso de física médica e tinha acesso a uma máquina novinha. Consegui levar esse jovem pra lá. Foi ele quem diagnosticou minha doença usando ressonância magnética. É um negócio lindo.”
Mascarenhas passou 12 anos na Itália. Foi convidado pelo paquistanês Abdus Salam [1926-1996], ganhador do Nobel de Física em 1979.
Com o patrocínio de um dos mais brilhantes cientistas modernos, o brasileiro teve carta branda, prestígio e dinheiro para fazer biofísica molecular e física médica com cientistas do mundo inteiro.
Mascarenhas diz que fez um Carnaval na Itália, mas sempre voltava para São Carlos, com a visão de criar uma base global. “Se você faz ciência caipira, não entra no mercado. É uma Ferrari dentro da garagem sem gasolina nem motorista.”
Saiu da torre de marfim da universidade. “Foi uma sorte tremenda, porque eu sou incapaz de fazer a governança de uma empresa. Meus ex-alunos na engenharia fizeram a bola de neve das coisas que eu não sei. Tive muito apoio, de muita gente, da Fapesp, da Finep, do CNPq. Colaboradores são fundamentais.”
E faz questão de citar um em especial, Gustavo Frizieri, diretor científico da Braincare, que conheceu ao telefonar para farmácia em São Carlos para pedir um analgésico para dor de cabeça.
“Tenho a mania de perguntar o nome, o que a pessoa está fazendo, de quem é filho. Aí, a vozinha do outro lado disse: 'Sou farmacêutico, bioquímico'. Respondi: 'Caramba, é uma profissão maravilhosa. Você não gostaria de fazer pesquisa?'”
Diante da negativa do jovem, de que precisava trabalhar para sustentar a mãe e a tia desde que o pai tinha ido embora, ele o convidou para visitá-lo na USP e conseguiu uma bolsa para Frizieri fazer pesquisa.
Hoje, a dupla faz história como inventores do kit de sensor, fita e app que promete revolucionar o diagnóstico de várias doenças.
Mais um lance de uma trajetória de um professor pardal, que há 50 anos inventava um bisturi criogênico para o hospital do câncer em São Paulo.
Ao se aposentar da USP, com o apoio do amigo Adib Jatene, ex-ministro da Saúde, Mascarenhas decidiu criar uma empresa, para que após a sua morte um filho esquizofrênico tivesse um ganha-pão. O negócio vai completar 40 anos ano que vem. “Subiu feito foguete. Tem 90 mil clientes, 3.000 hospitais trabalhando com ela.”
A empresa é dirigida por dois filhos de Mascarenhas, que adotou outros dois, fruto de um segundo casamento. O herdeiro que tinha esquizofrenia morreu.
“Continuo pesquisando a doença que matou meu filho. É uma promessa de morte, não de vida”, afirma o cientista nonagenário. "Além disso, estou trabalhando em um projeto que usa inteligência artificial para tratar do Alzheimer”, emenda, empolgado com a revolução do terceiro milênio.
Eliane Trindade
Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.
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