Almanaqueiras: ou não queiras.

Almanaqueiras: ou não queiras.

sábado, 9 de setembro de 2017

Para novas derrotas devemos ir, para outras dores, e mais duras, para que enfim se derrote a dor.

Nem só de política se fez o ano de 1977, quando a PUC foi invadida pela polícia 

Mario Sergio Conti 




As peruas Veraneio chegaram à rua Monte Alegre com as sirenes a mil. Era uma noite abafada, a primeira da primavera, 22 de setembro. Corremos pela rampa que dava para o prédio novo da universidade. A tropa atirou petardos que pareciam pombas furiosas.

As bombas de efeito moral nauseavam. As de gás intoxicavam. A seiva das incendiárias grudava na pele. A invasão da PUC está fazendo 40 anos: lembra, corpo. Acuados no topo do prédio, fomos tocados às bordoadas até o estacionamento em frente ao campus.

Eu cursava letras inglesas ali, de manhã. Começara com Chaucer e agora, no último ano, lia a lírica de Auden. Fazia jornalismo à tarde na USP. A Escola de Comunicações e Artes era uma zona.

Ainda assim, aprendi algo do ofício editando "Palavra de Ordem" e "Avesso". Revisava manuais de medicina. Traduzia "La Vérité". Era balconista numa livraria. Escrevia panfletos. Tinha 22 anos.

O primordial era a política. Militava num grupo trotskista que reconstruía o partido mundial dos trabalhadores, a Internacional. Criticávamos a luta armada castrista, o reformismo socialdemocrata e a opressão stalinista. Éramos revolucionários.

Fomos levados, uns 900, ao quartel da Tropa de Choque, onde nos ficharam. Os meganhas estavam com o capeta. O celerado-mor era o coronel Erasmo Dias, secretário da Segurança. "Ninguém sai!", latia ele, apoplético. Ao longo das horas lentas, contudo, fomos sendo soltos.

Não todos. Fui transferido para o Departamento de Ordem Política e Social. Era freguês do Dops: expulso do colégio Rio Branco por subversão, fora preso em passeatas e numa pichação. Um tira puxou papo sobre o Palmeiras.

As camaradas eram lindas e não tinham medo.

Achávamos que, com a greve geral na França e a Primavera de Praga, a partir de 1968 a revolução era iminente. Ela afrontaria a burguesia e a burocracia soviética. Era urgente reconstruir o partido que a conduzisse à vitória. Socialismo ou barbárie.

O triunfo do Vietnã sobre o imperialismo e a Revolução dos Cravos, em Portugal, reforçaram a luta imediata pelo comunismo. A derrota do Chile de Allende corroborava a bancarrota reformista e a pertinência da política revolucionária.

Fui solto ao raiar do dia na tímida primavera urbana. Comprei a Folha e peguei um ônibus para o Paraíso. Meu nome saíra no jornal: era um dos 32 processados com base na Lei de Segurança Nacional. "Tentativa de organização de entidade clandestina", acusava o inquérito.

Não havia perigo. Tínhamos uma análise esquemática da situação nacional: com a pressão popular, a ditadura cairia e viria o levante revolucionário. O que o reformismo oferecia eram restos da ração que a elite dava a seus cães de guarda.

Nem só de política se fez o annus mirabilis de 1977. Um dia depois da cana, revi "Lacombe Lucien" com a Neusa. Começamos a namorar e fui morar com ela já naquela noite. Prestei concurso na Folha semanas depois e passei a trabalhar.

Na lembrança de um colega, a Redação parecia o Smolny, o instituto para moças em Petrogrado, ocupado pelos bolcheviques antes da Revolução de Outubro. Éramos todos engajados. Reuniões e protestos se repetiam. Não era fácil. Mas ninguém tomava antidepressivos.

Comprei uma Honda 125 usada. Ajudava greves de professores, metalúrgicos, gráficos, até de taxistas. Ia de moto para o jornal, batia o ponto e saía entrevistar Delfim, Serra, Lula, Sayad, FHC, tanta gente. Cobria enchentes, assembleias, petições na periferia, o que fosse notícia.

O radicalismo derreteu e não há fantasmas no dia claro. O reformismo, que nos trouxe ao annus horribilis de 2017, virou outra coisa: pau nos pobres, pasmaceira, impasse. Um poema de Auden, lido quando da invasão da PUC, dizia:
Para novas derrotas devemos ir, para outras dores, e mais duras, para que enfim se derrote a dor.

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