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terça-feira, 4 de outubro de 2016

O feito inédito da vitória de Doria no primeiro turno reflete o desequilíbrio instaurado no jogo político-eleitoral entre PT e PSDB.

A indigestão da política 

Gustavo Venturi 

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O mote da antipolítica trabalhado pelo marketing de campanha de João Doria -"não sou político, sou gestor", dizia o candidato do PSDB à frente de uma coligação de 13 partidos- deu fruto no pleito deste ano, contribuindo para uma vitória eleitoral ainda no primeiro turno, inédita em disputas paulistanas.

Não foi nesta eleição, contudo, que tal estratégia -supostamente enterrada desde que Fernando Collor dela se valeu para se eleger presidente- ressuscitou.

Em São Paulo, na disputa de 2012 pela prefeitura, Celso Russomanno resistiu na liderança ao longo de quase todo o primeiro turno justamente com um discurso em que tratava de transmitir como virtude o que, a princípio, era debilidade -seu pequeno PRB e a ausência de alianças com partidos maiores.

Apresentava-se como um candidato independente, "sem conchavos político-partidários", cuja garantia de uma boa gestão assentava-se nas promessas de uma administração enxuta, ocupada por especialistas (não por políticos apadrinhados), e de uma relação direta com os cidadãos-consumidores (dos quais, afinal, era defensor de longa data), sem mediação partidária.

À época, o contexto institucional já favorecia a emergência de uma candidatura "independente", pois, dos 12 nomes apresentados, quatro mostraram-se competitivos (José Serra, Fernando Haddad, Russomanno e Gabriel Chalita somaram 94,9% dos votos válidos), distanciando o pleito de uma disputa bipolarizada entre situação e oposição, ou entre esquerda e direita.

Mas como se viu, em 2012 Russomanno acabou não chegando ao segundo turno, atropelado pela dinâmica da disputa entre as candidaturas das então duas principais forças partidárias: o PT, com Haddad, e o PSDB, com Serra.
O que mudou de 2012 para 2016, facilitando a contundente vitória de João Doria -que, naturalmente não podendo se vender como "independente", construiu sua imagem em chave assemelhada, como não político? Que leituras admite esse processo sobre o desenvolvimento de nossa cultura política?

Em 2016, a competitividade na eleição paulistana foi semelhante à de 2012: quatro em dez candidaturas mostraram-se competitivas (Doria, Haddad, Russomanno e Marta somaram 93,6% dos votos), também sinalizando uma disputa não bipolarizada.

No entanto, o grau de volatilidade (dado pelo somatório das diferenças de voto das principais siglas em relação ao desempenho delas mesmas na eleição anterior) medido em uma escala de zero (em que ninguém teria mudado de legenda) a cem (em que todo o eleitorado teria mudado de partido) passou de 14,4, na relação 2008-2012, para 22,5, entre 2012-2016.

Maior volatilidade expressa menor vínculo entre eleitores e partidos, aumentando a chance de vitória de outsiders -ou de candidatos que assim pareçam ser.

Ora, os indicadores sobre preferência e rejeição partidárias foram claros sobre a mudança da imagem na opinião pública, à luz de respostas consideradas insuficientes às demandas das manifestações de junho de 2013. Depois, sobre a mudança da imagem do PT, responsabilizado integralmente pela crise econômica e marcado pela focalização e espetacularização de ações da Lava Jato em torno de suas lideranças, contribuindo para lhe impor a pecha de fundador da corrupção no Brasil.

Tais eventos construíram a maioria pró-impeachment de Dilma Rousseff -dividindo a opinião pública em 2/3 que consideraram justo afastá-la como se destitui um primeiro-ministro com desempenho ruim e 1/3 que considerou a cassação um golpe parlamentar.

A eles se junta o próprio impeachment para explicar, em boa medida, o mau desempenho eleitoral da esquerda em geral neste ano -e do PT em particular-, que terá a partir de 2017 apenas pouco mais de 1/3 do número de prefeituras, em comparação ao que conquistou em 2012.

O feito inédito da vitória de Doria no primeiro turno reflete o desequilíbrio instaurado no jogo político-eleitoral entre PT e PSDB.

Mas, diferente do que pode aparentar, a opção por esconder a política (como se não houvesse fundamentos políticos-ideológicos e interesses de classe que sustentam a concepção de Estado e sociedade expressa em suas propostas), aliada ao sucesso eleitoral dessa escolha, indica o longo caminho a percorrer para o amadurecimento da nossa democracia.

GUSTAVO VENTURI, 58, é professor de sociologia da USP. Ex-diretor do Instituto Datafolha (1992-1996), é coautor do artigo "Russomanno e Ratinho Jr.: discurso de 'independentes' em ondas despolitizantes", publicado no livro "A Lógica das Eleições Municipais" (FGV Editora)

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