
Luís Costa Pinto
Quando se arruma a biblioteca de casa
Sempre disse lá em casa que um dos momentos cruciais na vida de um ser humano – daqueles que dividem os meninos dos homens – é a hora em que se estanca diante da prateleira de um grande supermercado para comprar xampu para a mulher e as filhas. Experimentem. E será pior se você tiver em casa três mulheres com cabelos desumanamente diferente – no meu caso, ondulado e volumoso (preto de origem), liso e ralo (castanho com luzes) e liso e volumoso (loiro natural, apesar dos pedidos a Deus para que fosse ainda mais loiro).
Foto meramente ilustrativa (Google)
Tem para cabelos ondulados e secos – mas aí é para pouco volume. Se você acha um que é para cabelos ondulados, secos e volumosos, não é para “quimicamente tratados” (ou seja, pintados. Rehab capilar). Uma tem cabelo para três gerações, como a mãe. A outra, coitada, nunca pôde usar pitó porque a liga caía ante a escassez de pelos. Certa vez me vi contemplando por uns bons 20 minutos a prateleira de um grande atacadista tentando achar xampus ideais. No fim, desisti e impus minha autoridade ao chegar em casa: recorri à frase antológica dos meus avós, adaptada para os xampus. Eles diziam “sentou à minha mesa, tem de comer a minha comida”. Eu disse, para encerrar o papo, que “tomou banho nos chuveiros de minha casa, tem de usar os meus xampus”.
Mas quero falar é de livros e de fotos. E de uma chaise longue icônica. Usei a história dos xampus e da indecisão ante a prateleira do supermercado porque ela me passou pela cabeça no fim de semana reservado para arrumar a biblioteca de casa.
Foi uma experiência singular. Obviamente não foi a primeira vez que arrumei os livros de casa. Em geral, contudo, fazia isso em meio às mudanças de endereço, de cidade... meia dúzia de vezes no curso de quase 30 anos. Agora, contudo, eu e Pat resolvemos dar contornos definitivos de biblioteca a um amplo espaço que temos em casa e ainda conservava os ares da antiga proprietária, uma viúva de quem compramos o imóvel há 13 anos.
Finda a reforma, um toque espiritualista ao enredo: o vão reformado era uma das áreas que Dona Lia mais gostava na casa. Ela nos disse isso quando fechamos negócio no imóvel. Na última sexta-feira, no momento em que o mestre de obras declarou a adaptação encerrada, um pé-de-vento soprou do nada em nosso quintal e derrubou, quebrando o tronco ao meio, uma das palmeiras cujo movimento lento de balançar e voltar à posição original era o que a viúva mais gostava de admirar enquanto esperava o tempo passar na varanda. A palmeira caiu no jardim da antiga vizinha, contemporânea e amiga de Dona Lia. Acostumado a esses sinais, só registrei. Começava a antever o que o sábado e o domingo nos reservavam.
Usufruí tudo o que o fim de semana me proporcionou. Nossa biblioteca familiar é resultado da unificação dos acervos meu, da Pat e de parte dos livros de nossos avós. Foi se formando empiricamente, despretensiosamente. Mas sempre nos deu uma ponta de orgulho.
Qual bibliotecário diletante, ou, por outra, sentindo-me uma espécie Borges do Cerrado (digo isso com humildade, sem recorrer de forma alguma aos superlativos pernambucanos), defini uma certa lógica para os nichos. Arrumei-os por autores, por língua de origem e por temas – ficção, biografias, poesias, jornalismo literário, psicologia, saúde, bem-estar, medicina, relatos de viagem, culinária, relatos culinários, guias de viagem... livros de autores russos, ingleses, norte-americanos, espanhóis ou de língua espanhola, africanos, portugueses e obviamente brasileiros e de língua portuguesa.
Cada livro que movia era olhado com carinho, manuseado, eventualmente folheado. E trazia reminiscências singulares. Alguns tinham dedicatórias, todas relidas. Eram as mais variadas possíveis: de amor, de sofrimento, de união, de reconciliação, de amizade. E até algumas burocráticas mesmo. Guias de viagem tinham roteiros rascunhados, felicidades guardadas em recibos restaurantes, de bares, de museus. Vida, enfim.
Arrumar a própria biblioteca é revisitar o passado atiçando lembranças. É também revisar o presente lembrando de imediato o que urge reler e em quais autores contemporâneos, ou entre já mortos, é necessário investir ainda. E é planejar o futuro estabelecendo o que será possível conhecer por meio dos livros enquanto você é capaz de conservar a capacidade de lembrar e de se deixar surpreender por novos autores.
Perdi-me, assim, dentro da pequena biblioteca de casa. Já no domingo à noite comecei a desencaixotar e a dispor as fotos nas prateleiras. Retratos de família, de velhos queridos que já foram e que manusearam alguns daqueles livros. Registros de viagens e de momentos ímpares vividos com os filhos, com os pais, com os irmãos, sobrinhos e afilhados. Sorrisos congelados servindo como portais para a nostalgia. A boa nostalgia – aquela do que foi vivido.
Esta manhã, antes de sair de casa, subi para contemplar a biblioteca. Lancei um olhar panorâmico para as fotos, para as lombadas nas prateleiras, para a chaise longue de design dinamarquês comprada por meu avô Luís num leilão em Belém do Pará, na década de 1930. Mandei restaurar a cadeira, trancei-a com couro cru de búfalo, busquei a tonalidade original da madeira linda com que foi fabricada. Não só para mim, mas hoje em dia também para a Pat: aquela cadeira tem certa magia, produz em nós uma sensação imediata de calma e de reflexão. Deitar-se nela é como permitir a entrada de bons fluidos, de boas ideias. Voltei a olhar em volta, antes de ir trabalhar, escutei o silêncio, fechei a porta e senti que havia arrumado, no fim semana, um lugar para a alma: a biblioteca de casa. Ali não se separa meninos de homens, como a agonia do pai diante da prateleira de xampus. Na biblioteca de casa, com nossas fotos em meio aos livros, convivemos com nós mesmos em diversos planos.
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