Almanaqueiras: ou não queiras.

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domingo, 27 de março de 2016

restaurar ou não restaurar, eis a questão.

Brasileira há 40 anos no Louvre lidera restauro da última tela de Da Vinci


No maior e mais famoso museu do mundo, uma ala inteira de funcionários se esforça ao máximo para ser invisível. Regina Moreira, que está há mais de 40 anos no departamento de restauro do Louvre, em Paris, lidera esse time.

"Um quadro em bom estado não vem parar nas minhas mãos. A preocupação é prolongar a vida da obra", diz a brasileira, que agora está à frente do esforço para reavivar o "São João Batista", tela do início do século 16 pintada por Leonardo Da Vinci. "Uns são mais difíceis; outros, mais fáceis. Mas o que fica é a memória da pintura, a mensagem."

Moreira não se esquece dos rostos e paisagens que revigorou ao longo dos anos. De Bellini e Ghirlandaio a Rembrandt, e agora Da Vinci, ela já meteu as mãos –de verdade– em boa parte do acervo do Louvre e costuma ser convocada para toda e qualquer operação de risco.

Wikimedia Foundation/C2RMF
A person looks at the painting "Saint-Jean Baptiste" by Leonardo da Vinci in the Louvre Museum.Credit Wikimedia Foundation / C2RMF ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
"São João Batista" (1508-09), de Leonardo Da Vinci

Nos próximos dez meses, tempo que deve durar a intervenção plástica na última tela do mestre renascentista, a restauradora, mesmo que não goste, estará sob os holofotes, seguida de perto por apoiadores e detratores de mais uma cirurgia em Da Vinci.

"Somos de um métier de uma grande modéstia", diz Moreira. "A melhor restauração é a que não se vê, porque não fomos nós que pintamos esses quadros. Estamos a serviço do pintor, vamos interpretar e fazer nosso trabalho de conservação, mas não devemos interferir de maneira que seja visível."

Mesmo que, no final, o quadro volte a ver a luz do dia com fôlego renovado, o longo processo na mesa de restauro inspira debates acirrados, em especial no caso de Da Vinci, que tem pouquíssimas obras sobreviventes, seis delas no acervo do Louvre.

Há quatro anos, quando o museu parisiense decidiu restaurar uma dessas obras, "A Virgem e o Menino com Santa Ana", a polêmica foi enorme.

DEMISSÕES

Dois restauradores do museu, Ségolène Bergeon Langle e Jean-Pierre Cuzin, pediram demissão por discordar da forma como foi conduzida a intervenção, desencadeando uma onda de ataques ao Louvre por seu suposto vício em projetos de restauro de viés marqueteiro, mais talhados para chamar a atenção do que de fato salvar uma obra.

Moreira não comenta o episódio, mas conhece a exigência do público. "Aqui na França o povo acha que o museu pertence aos cidadãos", afirma. "Eles acompanham tudo, criticam e se manifestam."

Não foi diferente desde que anunciaram o restauro de "São João Batista". Um dos quadros mais enigmáticos de Da Vinci, a tela mostra um santo andrógino, com longos cabelos encaracolados emoldurando um rosto de expressão ambígua, que lembra o sorriso de sua "Mona Lisa".

Vendo a obra tanto como obra de arte quanto como um documento histórico, alguns especialistas se opõem ao restauro, temendo que a intervenção no "São João Batista", terceiro quadro do mestre a "entrar na faca" no Louvre, seja um prelúdio a um possível restauro da "Mona Lisa" –o museu descarta, por enquanto, qualquer retoque na Gioconda.

"É normal que existam pessoas que não estejam de acordo", diz. "Às vezes, elas têm razão, às vezes, não. Mas a crítica ajuda no trabalho."

Moreira, aliás, tem outro tipo de ajuda. Um time de especialistas, responsáveis jurídicos pela obra diante do governo francês, acompanha cada passo de sua operação no "São João Batista". Um dossiê da tela, com radiografias e exames físicos, também detalha o estado de cada milímetro do quadro antes do restauro, algo usado para monitorar cada passo da intervenção.

"Tudo é controlado, tudo passa por um pente fino", explica. "Nós somos vários envolvidos, mas a principal executante sou eu porque tenho contato íntimo com a obra."

BELAS ARTES

Herdeira de uma tradicional família de Salvador, Moreira foi estudar belas artes em Madri, mas desviou o foco depois de ler um artigo de jornal sobre uma escola de restauro que abria as portas na capital espanhola.

Ela fez o curso, passou por um estágio em Bruxelas e depois foi aceita para a área de restauros dos museus públicos franceses, o que a levou primeiro ao Museu d'Orsay, onde restaurou telas de Manet e Monet, e depois ao Louvre.

No maior museu do mundo, seu projeto mais relevante antes do "São João Batista" foi a remoção, há três anos, de velhas camadas de verniz que mergulhavam na penumbra uma das telas de Rembrandt.

Essa experiência em desbastar camadas das telas pesou na escolha de Moreira para liderar o restauro de Da Vinci, um quadro que não passa por intervenções desde o século 19 e que, ao longo do tempo, ficou cada vez mais escuro.

"Os vernizes se oxidam, ficam muito amarelados", explica a restauradora, acrescentando que são as reações químicas desse material que alteram a coloração do quadro, não a espessura do revestimento. "Não vemos o quadro direito porque o verniz perde a sua transparência."

Seu esforço ao longo deste ano será remover essas camadas de verniz opaco para devolver a luminosidade da tela de Da Vinci, revelando detalhes do manto de pele do santo e de seus cabelos. Moreira, no entanto, ressalta que há limites no que pode ser feito e devolver o esplendor original da tela é quase impossível.


"Tudo envelhece", diz Moreira. "Não podemos rejuvenescer, e as obras também não. São como nossas rugas." 


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