O segundo erro de Veríssimo
Conceição Freitas - C. Braziliense
O mais importante cronista brasileiro vivo, segundo a última pesquisa do meu coração, tem ensinado aos leitores, há pelo menos 30 anos, como viver a vida com uma mistura de bom-humor, ironia e felicidade desesperançada. O filho do seu Érico está desesperançadamente grato. Na crônica de ontem, agradeceu ao planeta: “Parabéns à Terra, que nos acolheu sem fazer perguntas, nos deu água e o oxigênio de que precisávamos para viver e ainda nos proporcionou grandes crepúsculos, sem falar no cheiro de capim molhado e no pudim de laranja. Obrigado, velha”.
Mas o cronista pisou na bola, na minha bola simbólica, e na de milhões de brasilienses ferozmente apaixonados pela invenção de Lucio Costa. O cronista escreveu: “Fizemos muita bobagem — guerras, filhos demais, carros com rabo de peixe, Brasília — mas também coisas admiráveis: a Catedral de Chartres e a Patricia Pillar.”
Cada cabeça, uma sentença, embora boa parte das sentenças de Verissimo sejam também os meus juízos e, por certo, os da torcidas do Flamengo, do Corinthians e, claro, do Internacional.
Verissimo já contou em crônica que votou em Jânio Quadros, porque, ele mesmo admitiu, caiu no conto da varredura da corrupção do governo Juscelino. Não dá pra saber se veio desse tempo a antipatia por Brasília. Menos ainda se sabe quantas vezes o filho de dona Mafalda visitou a capital. Talvez tenha sobrevoado, de carro, a Esplanada e aterrissado em ambientes políticos e/ou soçaites, o que é a mesma coisa. Talvez esteja historicamente contaminado pela monumentalidade abissal do projeto de dr. Lucio e acreditado que aqui a vida não viceja.
Embora desesperançados, nós, os brasilienses, somos felizes entre o céu, o vazio e o monumento. Espécie estranhamente feliz tem ocupado as imensidões dos gramados da capital, fazendo barricadas contra a voracidade da especulação imobiliária, invocando novos sentidos para a cidade, reconhecendo nela qualidades singulares. (Que outra metrópole nos oferece a sensação de flutuar no espaço cósmico? De certo modo, somos índios urbanos, os brasilienses).
O marido de dona Lúcia mexeu em vespeiro. Porque, se os brasileiros cultivam predatória antipatia por Brasília, brasilienses nativos e os adotivos têm pela cidade uma paixão vigilante e que (acredite, Verissimo) tem se expandido com as novas gerações. Há no pequeno Plano Piloto (pouco mais de 200 mil habitantes), dezenas de lojas de objetos de arte e de design, camisetas, livros, fotos sobre Brasília. Não há uma semana em que não se inaugure uma exposição sobre a cidade, sua arquitetura, sua arte, sua geografia, sua história, seu paisagismo, sobre o cerrado, os povos do cerrado, as flores do cerrado, até a terra vermelha vira obra de arte. Está na moda, entre os jovens, fazer tatuagem com um símbolo da cidade.
Talvez para um gaúcho atado à plenitude dos pampas, as lonjuras desatadas do Brasil sejam um capítulo banal da história. Até Juscelino, os que nasciam acima das Minas Gerais eram filhos exilados em seu próprio território. Brasília uniu os pontos da identidade brasileira. Se até hoje não sabemos exatamente quem somos, antes… nem éramos. Não há cidade mais brasileira que Brasília. Aqui, juntamos nossas carnes e nossas almas, nossos desesperos e nossas plenitudes, nossos costumes e nossos vícios. Brasília é corrupta como o Brasil, delirante como o Brasil, contraditória como o Brasil, surpreendente como o Brasil.
A Catedral de Chartres, 869 anos, é patrimônio da humanidade. Brasília, 54, idem. Da próxima vez que vier a Brasília, Verissimo, eu dou uma flor do cerrado pra você.
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