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segunda-feira, 3 de junho de 2013

Uma cafetina que não ousava dizer seu nome

Bens de cafetina dos anos 1950 serão leiloados pela prefeitura

Leonardo Gorges - O Globo


Título de eleitor de Alice de 1957: cafetina dizia ter ocupações domésticas
Foto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo

RIO - As paredes desbotadas, o forte cheiro de mofo e os vidros quebrados da cobertura do prédio de número 454 da Avenida Beira Mar, no Centro, em nada lembram o burburinho que era a casa de Alice Devaux nos anos de 1950. Influente entre políticos e empresários da época em que a cidade ainda era capital federal, a francesa era uma mulher requisitada. Após o expediente, seu apartamento, com uma espetacular vista para a Baía de Guanabara, era o lugar ideal para afrouxar o nó da gravata, bebericar uma champanhe e fazer novas amizades.

A movimentação na cobertura não era apenas pela qualidade da bebida ou pelo bom papo da anfitriã. Alice, na verdade, era uma cafetina de luxo. A qualidade de seus serviços lhe rendeu um patrimônio de 16 imóveis, avaliados em mais de R$ 10 milhões, que serão leiloados pela prefeitura dentro de até dois meses. Falecida em 1989, aos 86 anos, a francesa não deixou herdeiros nem testamento. Por quase 20 anos, seu espólio foi administrado pela Uerj. Em 2009, porém, após longa batalha judicial, a prefeitura se tornou dona dos bens. Uma lei federal de 1990 determina que, na falta de herdeiros ou testamento, o patrimônio fique para o município. Antes disso, os bens iam para os estados e, no caso do Rio, a Uerj os recebia.

Além de imóveis no Centro, Alice era dona de uma chácara na Gávea, com quase quatro mil m², avaliada em R$ 5 milhões.

A história de Alice Devaux no Brasil começa em 18 de abril de 1925, quando desembarcou pela primeira vez no porto do Rio, vinda de Paris. Então com 21 anos, a jovem retornou por três vezes ao seu país de origem antes de se estabelecer definitivamente no Rio, em dezembro de 1931.
Loira, alta, muito magra e sempre maquiada, jamais perdeu o característico sotaque francês. Conhecidos descrevem a francesa como uma pessoa tranquila e reservada, que não falava sobre suas atividades profissionais.

Todos no prédio sabiam do seu ofício. Muita gente importante já andou por estes elevadores — relata o aposentado Roberto Lanaro, de 81 anos, que mora até hoje no apartamento abaixo da cobertura.

Em seu processo de naturalização, finalizado em 1951 e ao qual O GLOBO teve acesso, ela declarou viver de rendimentos, que lhe garantiam cerca de 25 mil cruzeiros por mês. Corrigido pelo Índice Geral de Preços (IGP), do Banco Central, o valor equivale a R$ 21.700 atualmente.

Além dos imóveis, a cafetina possuía 1.036 ações da Companhia de Luz Steárica, cada uma no valor de 200 cruzeiros, e cerca de 1 milhão de cruzeiros no extinto Banco Boavista. Em valores atuais, as economias da francesa equivaliam a pouco mais de R$ 1 milhão. Antes disso, na década de 1930, a francesa já havia sido sócia de uma empresa chamada Controle Industrial e Financeiro SA, ao lado dos irmãos Alfredo e Raul Monteiro Guimarães.

Mas o que lhe garantia o alto padrão de vida era o aluguel de rendes-vouz’ — apartamentos usados para encontros pessoais — que lhe garantia o alto padrão de vida que levava. Para quem buscava discrição, Alice era um porto seguro.

— Naquela época, havia registro de todas as pessoas que se hospedavam em hotéis. Os imóveis dela eram a garantia de que esses encontros permanecessem secretos. Ela tinha camareiras que deixavam os apartamentos sempre prontos para quando os clientes quisessem utilizá-los— diz um antigo inquilino de um imóvel comercial da francesa.

Se atualmente há poucas testemunhas que conviveram com Alice , há muito gente que jura conhecer a Alice morta. Os porteiros do prédio de número 06 da Avenida Almirante Barroso, no Centro, onde ela também possuía imóveis, garantem ainda vê-la vagando pelos corredores durante a madrugada. Vestindo muitas joias, ela está sempre segurando uma taça de champanhe. Corre ainda a lenda de que teria sido a francesa a responsável pelo prédio não vir abaixo quando do desabamento do vizinho prédio Liberdade, em janeiro do ano passado.

Entre as histórias, no entanto, a certeza é que tratava-se de uma pessoa solitária. Devaux nunca casou nem teve filhos. Em sua ficha de naturalização, declarou como motivo de seu pedido o fato de “gostar do Brasil e não ter mais ninguém na França”.

Desabitada há quase 20 anos, a cobertura da Avenida Beiramar ainda não teve seu preço mínimo definido. De acordo com um funcionário da prefeitura, o valor não deve ultrapassar R$ 1 milhão, já que o imóvel, com infiltrações, vazamentos e problemas elétricos, necessita de uma ampla reforma antes de voltar a ter moradores.

Segundo o superintendente de patrimônio imobiliário da prefeitura, Fabrício Tanure, cerca de 35 casos de heranças jacentes chegam ao seu conhecimento todos os anos. Após o registro do óbito e a constatação de que há uma herança sem beneficiários, é iniciada uma investigação.

— Os imóveis não podem ser vendidos nos cinco primeiros anos após a morte do proprietário. Neste meio tempo, há possibilidade de surgir um herdeiro, um parente de até quarto grau. Os bens podem ser alugados, para pagar as despesas do espólio — afirma Tanure. — Todos os rendimentos ficam em uma conta judicial e não podem ser mexidos. O mesmo vale para a venda antecipada de alguns bens.

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