O último churrasquinho
Morte de Bola, o mendigo bico fino, deixa tristeza e um vazio no Jardim Botânico
por LAÍS COELHO
O bairro carioca do Jardim Botânico está de luto – ou pelo menos os três elegantes quarteirões compreendidos entre as ruas Professor Saldanha, Frei Leandro e Custódio Serrão. Por 25 anos, seus moradores, porteiros e comerciantes conviveram de forma harmoniosa com a figura extrovertida de Octávio Moreira Júnior, um mulato obeso que, aos 8 anos de idade, trocou a casa da mãe, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, pelas calçadas da região. Apostou que seria mais feliz mendigando sob os braços do Cristo Redentor, na Zona Sul do Rio, e até o fim da vida afirmava que tinha apostado certo.
Com mais de 130 quilos e uma cintura tamanho 66, Octávio morreu no dia 28 de abril, sem conseguir respirar. Recém-saído de uma pneumonia, sentiu-se mal na rua Jardim Botânico (a principal do bairro), subiu num ônibus com a ajuda dos entregadores de uma pequena farmácia e faleceu, horas mais tarde, a mais de 30 quilômetros dali, no Hospital Estadual Carlos Chagas, em Marechal Hermes, na Zona Norte do Rio.
Quem alertou o bairro sobre o fim de Octávio foi um taxista que costumava fazer ponto nas cercanias do túnel Rebouças. O motorista havia levado uma paciente à mesma emergência e voltou de lá estupefato. “Vocês não vão acreditar no que eu vi”, repetia o homem, pálido, no meio da rua, “o corpo do Bola! O Bola morreu!”
Sempre ofegante por conta do excesso de peso que arrastava, Octávio não se aborrecia com o apelido. Era o rei da gula, apesar do sonho de um dia fazer uma cirurgia de redução de estômago. Sabia elencar os ingredientes das principais maravilhas gastronômicas do Jardim Botânico. No topo de sua lista, estava o “macarrãozinho com camarão” servido pelo chef francês Claude Troisgros no Olympe, restaurante grã-fino aberto em 2003. Com um potinho de sorvete da Kibon em punho, Bola comumente recorria à cozinha do estabelecimento e conseguia provar o prato sem pagar nada.
Em seguida, no ranking de Octávio, estavam o pastel de forno de palmito da padaria Le Pain du Lapin, na rua Maria Angélica, e o pão de queijo recheado com ricota da Pin Pin Sucos, situada bem em frente. O Bola também apreciava comida japonesa, mas sentia certa repugnância diante da oportunidade de provar o pato laqueado servido no Mr. Lam, de Eike Batista. “Coisas da China. Eu passo.”
Por conta de seu afinado paladar e de sua amizade com a família Troisgros, em agosto de 2012 Bola ganhou as páginas da piauí e um novo apelido: “mendigo bico fino.” Na época, sua saúde já preocupava médicos dos hospitais públicos da região. Seus triglicerídios beiravam 235 (o normal é 150), e sua diabete era controlada com a ajuda de amostras grátis de Pioglit.
A morte de Bola provocou tristeza tanto entre os garis do posto de coleta de lixo da Comlurb – onde ele costumava tomar banho e guardar seus pertences – quanto entre os frentistas do Posto Monalisa – em cuja lanchonete Octávio descolava café e água. Para o grupo, avassalador mesmo é o fato de ninguém saber onde ele foi enterrado nem ter podido prestigiá-lo em seu serviço fúnebre – se é que houve um.
Numa manhã chuvosa no fim de maio, os feirantes que tomam a rua Frei Leandro aos sábados ainda trabalhavam consternados com a perda do amigo. Pedrinho dos temperos, que jogava dominó com Bola enquanto negociava pimentas dedo-de-moça, preferiu guardar silêncio ao ser perguntado sobre Octávio. “Dona, é melhor deixar a alma dele descansar em paz. Vamos respeitar.” Ao seu lado, inertes, viam-se o tabuleiro, as peças brancas de dominó e o caixote (reforçado) em que Octávio costumava se sentar.
Na barraca de laranja e tangerinas, um pouco mais à frente, o assunto ainda pulsava. “A senhora sabe onde está a mãe dele? O irmão?”, questionava o feirante grisalho. “A gente viu esse menino crescer por aqui. Era um cara bacana.” Diante da negativa, um muxoxo.
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