Devaneio
José Miguel Wisnick - O Globo

Acho a naturalidade leve do corpo semidespido uma conquista da civilização
De passagem pelo Rio (estou dando um curso na Casa do Saber sobre Clarice e participei do Simpósio sobre os 150 anos de Ernesto Nazareth), creio ter visto nesta semana a última revoada de moças, mulheres e garotas de shorts deste verão. Em São Paulo também tem, mas não se compara em quantidade expressiva. Pelo Brasil acima também, mas já é outro clima. Russas em Moscou, e americanas a seu modo, na Califórnia ou em Nova York, desfilam de shorts quando o tempo permite e convida. Mas há uma diferença indefinível. Acho que está ligada ao modo como a cultura da praia se espraia com naturalidade por toda a Zona Sul, no Rio. Não sei se alguma outra cidade grande tem essa mesma intimidade fusional com o mar, esse rumor “nas ruas junto à linha de espuma” e essa contiguidade social exposta ao sol e à noite.
Acho a naturalidade leve do corpo semidespido uma conquista da civilização. Não sei exatamente quando começou, no Rio, esse império da praia afetando o modo de ser, e revirando aquela cidade avessa ao mar que lemos nos romances do século XIX. Vejo em Vinicius de Moraes um pioneiro poético do assunto. Em 1946, o poema “Balada das meninas de bicicleta” exaltava essas “velozes massas em chama / explodindo em vitaminas”, cabeleiras agitadas aos ventos do Arpoador, “juventude de maiôs” mostrando francamente as pernas nuas. Podemos dizer que é uma percepção precoce e antecipadora da explosão vital do pós-guerra, da sociedade do consumo de massas e decorrente revolução dos costumes na década de 1960. Vinicius chega a antever e a conclamar ao “topless” com 20 anos de antecedência: “Vós que levais tantas raças / Nos corpos firmes e crus: / Meninas, soltai as alças / Bicicletai seios nus!”.
No final, prevalece a melancolia do poeta, “essa coisa triste / escravizada à beleza”, o homem maduro (ele tinha pouco mais que 30 anos...) vendo a menina que passa, deixando um rastro nostálgico no seu contemplador. Em suma, era já o autor da letra de “Garota de Ipanema” (que segue exatamente esse mesmo esquema), às voltas com uma das suas maiores obsessões, a da “mulher que passa” (nome de um outro poema seu, mais antigo ainda, dos anos 1930). Mas em Vinicius não é como em “A uma passante”, de Baudelaire, em que os olhos se cruzam por um instante e se transmitem os sinais de uma possível paixão total que se perde e se afunda na multidão. Não: parece mais uma ode antiga magnificada pela moldura do Rio. Mais do que em outros lugares, alguma coisa no Rio oferece o cenário privilegiado para o desfile contínuo do feminino. Mário de Andrade, num dos seus curiosos (e surpreendentes) poemas de paixão pela Guanabara e suas guanabaradas (“As cantadas”, de 1938) dizia: “Aiai, Guanabara! / Que todo me desfaleço / Por cento e dez avenidas, / Pela mulher de em seguida, / Por teus cheiros, por teus sais, / Pelos aquedutos, pelos / Morros de crespos camelos / E elefantes triunfais”. Reparem nessa “mulher de em seguida”, essa iminência permanente da aparição feminina, que também parece estar no ar que se respira, nos arcos e no impacto das montanhas.
Por tudo isso a “Garota de Ipanema” é um hino, um ícone e um índice de época desse motivo carioca recorrente. Que comparece difuso e onipresente na canção “Carioca” de Chico Buarque, uma ode ao Rio como cidade fusional, no avesso da “cidade partida” que ela também é, ou em “Tempo de estio” de Caetano Veloso do disco “Muito”. “Bolero blues”, parceria de Chico com Jorge Helder, por sua vez, pode ser vista como um desconcertante retorno da garota numa Ipanema onírica, labiríntica, onde ela desfila já como o eterno feminino, num tempo que é uma concentração de tempos e não tempos, vida e morte. Para se ver a que ponto de transcendência lírica chegou e chega a canção brasileira, e onde veio me trazendo o devaneio.
Tudo isso por causa do calor que já vai esfriando e fechando o verão, da massa do mormaço se diluindo e da visão em despedida das moças de shorts. Eu não queria viver em nenhuma outra época que não a nossa. Muito menos numa civilização de burcas sob o pretexto de resguardar a mulher dos apetites masculinos, e os homens das suas pulsões irrefreáveis ante a visão de qualquer parte do corpo feminino. Acho este um imaginário rondado pela sombra do assassinato e do estupro. Gosto da casquinha visual que se dissolve como sorvete. Amo a “Sagração da primavera” de Pina Bausch, uma das maiores criações artísticas do século, que vai fundo ao cerne disso, e amo a maneira leve e profunda como ela viu o Brasil e o Rio de Janeiro.
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