Pedro Neto, um cajazeirado autêntico, residente aqui em Brasília (e já morou vários anos em Cajazeiras na década de 70), ao ler o texo de Pereira Filho sobre “A Farinhada no Sitio Rita em Monte Horebe”, se sentiu tocado e também relatou a farinhada que ele viveu. Vejam que deleite de memórias do Pedro Neto. Eis:
“Pereira Filho,
Parabéns pelo texto publicado no AC2B “A Farinhada no Sítio Rita em Monte Horeb”.
Você descreve tão bem as coisas e para quem também viveu esse tempo e estas coisas que existiu
no interior do Rio Grande do Norte e da Paraíba, a gente vai revivendo tudo numa lembrança gostosa
e depois pensa: eu fui feliz.
Vivi na roça até aos quatorze anos, no sítio Baixa Grande, município de Portalegre, estado do Rio
Grande do Norte. Lá não era muito diferente a maneira de fazer a farinhada. Meu pai, pequeno agricultor,
quase sempre fazia no mesmo engenho, o mais próximo da nossa casa e nesses dias havia a mudança
para a casa do engenho e que era apenas uma cozinha grande e uma sala que era o lugar dos
trabalhadores fazerem as refeições sentados no chão e os pratos sob uma esteira de palha. Não podia ter
mesa porque a noite se transformava no local de pendurar as redes pra dormir.
As comidas servidas eram fortes tipo panelada, (pé, costela e aqueles ossos de boi que chamavam de
chambão e na hora de comer batia-se com um martelo pra sair o tutano), mungunzá cozido com
tocinho e pé de porco, feijão de arranca, macacheira, muita farofa de cuscuz e também muita carne pois
antes de começar a farinhada matavam porcos e bodes pra ter carne suficiente. E haja buchada e tripa assada.
De manhã o café era composto de tapioca com manteiga e às vezes girimum e cuscuz que se comia com leite.
E era tudo em grande quantidade e muito mais gostoso do que o que normalmente se comia, não sei por que.
Então pra meninada era uma festa, embora tivesse que trabalhar também, ajudando o prensador peneirando
massa prensada pra fazer a farinha, ajudando as mulheres a tirar goma, limpeza do engenho ou levar
um café na roça onde os homens arrancavam a mandioca.
A mandioca era levada da roça pro engenho em caçuá de couro pendurado em cangalha sob lombo de burro.
As raspadeiras de mandioca se dividiam: umas botavam capote, que era raspar metade da batata e depois
passar para as outras que finalizavam a raspagem e isso evitava que a sujeira de barro nas mãos passasse
para a batata.
A bolandeira do engenho funcionava com dois cavalos ou um boi. Com o tempo houve uma evolução e a
engrenagem diminuiu de tamanho e mais tarde em alguns engenhos usavam o motor e aí começou a diminuir
o espaço dos engenhos.
Mas o que eu gostava mesmo era no final da tarde e a noite chegando, quando quase todas as atividades
tinham se encerrado. O engenho todo limpo e o forneiro tirando a ultima fornada de farinha e as mulheres,
aproveitando o calor do forno, entravam em ação para fazer as tapiocas da goma e os bejús da massa.
Eram tapiocas grandes, umas com coco, especiais para os de casa e também o bejú assado sob folha de
bananeira. Tudo isso era consumido no café da manhã seguinte. Não podia comer aquilo quente pois dava
“bucho inchado” a noite.
Enquanto se fazia essas iguarias, as moças raspadeiras que já tinham tomado banho na cacimba, que
ficava próximo, e estavam agora cheirando a pó de arroz, namoravam na parte mais escura do engenho,
os homens contavam causos acontecidos, mentiras e gozações de todo tipo. Os mais velhos gostavam
de contar estória de trancoso, de almas penadas que por ali apareciam à noite. Tinha alguns que até
encenavam para contar as estórias e a platéia ficava de boca aberta. Eu gostava demais.
Os engenhos da região tinham fama de serem “malassombrado”, como diziam.
Mas o mais antigo e maior engenho, pertenceu a verdadeiros antigos senhores de engenho da região e
passou também pelos antepassados da minha família. Ligadas a esse engenho existiam dois casarões de
telhados altos, paredes sem rebouco e interior escuro. Nunca soube por que mas foi em uma dessas
casas que nasci, o primeiro dos onze filhos que minha mãe teve. Desse local as pessoas contavam
estórias horripilantes que davam um bom filme de terror.
Casos de pessoas que foram assassinadas e enterradas lá e escravos que foram enterrados vivos e
ainda se escutava os gritos, butija de ouro enterrada embaixo do forno, choro de crianças que uma
rapariga louca abortava e que morreram pagãs, ossos humanos que apareciam e despareciam ao
mesmo tempo, tochas que subiam e desciam pelas paredes, mula-sem-cabeça, cachorro com olhos
de fogo e que só era visto à noite, além de ter servido de acampamento para o bando de Lampião
quando passou pela região e também para os ciganos que apareciam por lá. Enfim, muito terror.
Mas estas conversas não iam até tarde da noite. Muito cedo todos iam dormir para poder acordar
também cedo no dia seguinte. Dos trabalhadores contratados só as mulheres raspadeiras dormiam na
casa do engenho, pois eram as primeiras, ainda no escuro e com auxilio de lamparinas, a começar os
trabalhos.
As crianças iam para suas redes, e antes só tinham que lavar os pés. Éramos sete irmãos, mais
as seis mulheres raspadeiras, a ajudante da cozinha, meu pai e minha mãe, mais um tanto de cacarecos,
então o espaço era pequeno e as redes armadas ficavam coladas uma na outra ou por cima e que às
vezes acontecia de alguém tomar um banho de mijo de meus irmãos ou irmãs mais novos.
Minha mãe e meu pai ainda ficavam conversando um pouco mais na cozinha enquanto ela adiantava
alguma coisa para as refeições do dia seguinte, talvez preparando a panelada que era sempre cozida
na noite anterior. Às vezes eu demorava pra adormecer, por causa do ambiente diferente da nossa
casa e também ficava pensando nas estórias que foram contadas e qualquer barulho estranho ou do vento
nas árvores eu achava que eram almas gemendo.
Fazer uma farinhada mobilizava muita gente e era nesse período que muitos homens e mulheres
ganhavam algum dinheiro. Ia desde os arrancadores e catadores na roça, os que levavam as cargas
para o engenho, botador d’água no engenho, tangedor de animal na bolandeira, raspadeiras, tiradeiras
de goma, prenseiro, forneiro e aqueles que vinham pra dar uma ajuda. Portanto era preciso bastante
comida inclusive muito café e meu pai dizia que o lucro da produção ia embora só no café servido aos ajudantes.
O pagamento pelo engenho era feito com parte da farinha e goma que fora produzida.
Lembro que a cada quatro quartas (medida quadrada, grande, feita de tábua, cheia até formar
uma pirâmide), uma quarta era do dono do engenho.
Para pagar aos trabalhadores e algumas despesas com a alimentação, vendia-se parte da produção a
compradores no local mesmo, a preço muito baixo ou levava em lombo de burro para ser vendida
nas feiras livres das cidades da região a preço melhor. O preço caia muito devido a grande oferta
no tempo das farinhadas. E ainda era necessário deixar em casa uma parte para ser consumida até
a próxima safra o que nunca era suficiente. A goma sempre acabava muito antes. Para o pequeno
produtor assim como meu pai, lembro dele dizer que o lucro não compensava tanto trabalho.
Em tempos de farinhadas meu pai sempre trabalhou nos engenhos, prensando massa ou torrando
a farinha, com diziam (forneiro). Mas na farinhada dele não fazia esses serviços, alugava outras pessoas.
Existia uma grande produção de farinha em Portalegre e era conhecida por ser a melhor da região.
Atualmente por lá não se planta mais a mandioca e os engenhos se acabaram. Mesmo que se fizesse
a produção da mandioca não teria um engenho nem pessoas para trabalhar e chegar ao produto
final. Só existe pequena produção nos “munturos” das casas e alguma pequena engenhoca para se
chegar a pequenas tapiocas feitas em fogão à gás.
Hoje o que predomina na região é a produção do cajú.
É isso aí, o texto ficou grande mas relembrei muita coisa, e não podemos esquecer o passado.
Obrigado por nos fazer lembrar de coisas boas.
Valeu, grande escritor carrazeirense!
Abraço,
Pedro Neto”
Vejam as fotos do arquivo de Pedro Neto sobre as Farinhadas.
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