Almanaqueiras: ou não queiras.

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quinta-feira, 11 de agosto de 2011

A Farinhada II

Pedro Neto, um cajazeirado autêntico, residente aqui em Brasília (e já morou vários anos em Cajazeiras na década de 70), ao ler o texo de Pereira Filho sobre “A Farinhada no Sitio Rita em Monte Horebe”, se sentiu tocado e também relatou a farinhada que ele viveu. Vejam que deleite de memórias do Pedro Neto. Eis:

“Pereira Filho,



Parabéns pelo texto publicado no AC2B “A Farinhada no Sítio Rita em Monte Horeb”.

Você descreve tão bem as coisas e para quem também viveu esse tempo e estas coisas que existiu

no interior do Rio Grande do Norte e da Paraíba, a gente vai revivendo tudo numa lembrança gostosa

e depois pensa: eu fui feliz.

Vivi na roça até aos quatorze anos, no sítio Baixa Grande, município de Portalegre, estado do Rio

Grande do Norte. Lá não era muito diferente a maneira de fazer a farinhada. Meu pai, pequeno agricultor,

quase sempre fazia no mesmo engenho, o mais próximo da nossa casa e nesses dias havia a mudança

para a casa do engenho e que era apenas uma cozinha grande e uma sala que era o lugar dos

trabalhadores fazerem as refeições sentados no chão e os pratos sob uma esteira de palha. Não podia ter

mesa porque a noite se transformava no local de pendurar as redes pra dormir.

As comidas servidas eram fortes tipo panelada, (pé, costela e aqueles ossos de boi que chamavam de

chambão e na hora de comer batia-se com um martelo pra sair o tutano), mungunzá cozido com

tocinho e pé de porco, feijão de arranca, macacheira, muita farofa de cuscuz e também muita carne pois

antes de começar a farinhada matavam porcos e bodes pra ter carne suficiente. E haja buchada e tripa assada.

De manhã o café era composto de tapioca com manteiga e às vezes girimum e cuscuz que se comia com leite.

E era tudo em grande quantidade e muito mais gostoso do que o que normalmente se comia, não sei por que.

Então pra meninada era uma festa, embora tivesse que trabalhar também, ajudando o prensador peneirando

massa prensada pra fazer a farinha, ajudando as mulheres a tirar goma, limpeza do engenho ou levar

um café na roça onde os homens arrancavam a mandioca.

A mandioca era levada da roça pro engenho em caçuá de couro pendurado em cangalha sob lombo de burro.

As raspadeiras de mandioca se dividiam: umas botavam capote, que era raspar metade da batata e depois

passar para as outras que finalizavam a raspagem e isso evitava que a sujeira de barro nas mãos passasse

para a batata.

A bolandeira do engenho funcionava com dois cavalos ou um boi. Com o tempo houve uma evolução e a

engrenagem diminuiu de tamanho e mais tarde em alguns engenhos usavam o motor e aí começou a diminuir

o espaço dos engenhos.

Mas o que eu gostava mesmo era no final da tarde e a noite chegando, quando quase todas as atividades

tinham se encerrado. O engenho todo limpo e o forneiro tirando a ultima fornada de farinha e as mulheres,

aproveitando o calor do forno, entravam em ação para fazer as tapiocas da goma e os bejús da massa.

Eram tapiocas grandes, umas com coco, especiais para os de casa e também o bejú assado sob folha de

bananeira. Tudo isso era consumido no café da manhã seguinte. Não podia comer aquilo quente pois dava

“bucho inchado” a noite.

Enquanto se fazia essas iguarias, as moças raspadeiras que já tinham tomado banho na cacimba, que

ficava próximo, e estavam agora cheirando a pó de arroz, namoravam na parte mais escura do engenho,

os homens contavam causos acontecidos, mentiras e gozações de todo tipo. Os mais velhos gostavam

de contar estória de trancoso, de almas penadas que por ali apareciam à noite. Tinha alguns que até

encenavam para contar as estórias e a platéia ficava de boca aberta. Eu gostava demais.

Os engenhos da região tinham fama de serem “malassombrado”, como diziam.

Mas o mais antigo e maior engenho, pertenceu a verdadeiros antigos senhores de engenho da região e

passou também pelos antepassados da minha família. Ligadas a esse engenho existiam dois casarões de

telhados altos, paredes sem rebouco e interior escuro. Nunca soube por que mas foi em uma dessas

casas que nasci, o primeiro dos onze filhos que minha mãe teve. Desse local as pessoas contavam

estórias horripilantes que davam um bom filme de terror.

Casos de pessoas que foram assassinadas e enterradas lá e escravos que foram enterrados vivos e

ainda se escutava os gritos, butija de ouro enterrada embaixo do forno, choro de crianças que uma

rapariga louca abortava e que morreram pagãs, ossos humanos que apareciam e despareciam ao

mesmo tempo, tochas que subiam e desciam pelas paredes, mula-sem-cabeça, cachorro com olhos

de fogo e que só era visto à noite, além de ter servido de acampamento para o bando de Lampião

quando passou pela região e também para os ciganos que apareciam por lá. Enfim, muito terror.

Mas estas conversas não iam até tarde da noite. Muito cedo todos iam dormir para poder acordar

também cedo no dia seguinte. Dos trabalhadores contratados só as mulheres raspadeiras dormiam na

casa do engenho, pois eram as primeiras, ainda no escuro e com auxilio de lamparinas, a começar os

trabalhos.

As crianças iam para suas redes, e antes só tinham que lavar os pés. Éramos sete irmãos, mais

as seis mulheres raspadeiras, a ajudante da cozinha, meu pai e minha mãe, mais um tanto de cacarecos,

então o espaço era pequeno e as redes armadas ficavam coladas uma na outra ou por cima e que às

vezes acontecia de alguém tomar um banho de mijo de meus irmãos ou irmãs mais novos.

Minha mãe e meu pai ainda ficavam conversando um pouco mais na cozinha enquanto ela adiantava

alguma coisa para as refeições do dia seguinte, talvez preparando a panelada que era sempre cozida

na noite anterior. Às vezes eu demorava pra adormecer, por causa do ambiente diferente da nossa

casa e também ficava pensando nas estórias que foram contadas e qualquer barulho estranho ou do vento

nas árvores eu achava que eram almas gemendo.

Fazer uma farinhada mobilizava muita gente e era nesse período que muitos homens e mulheres

ganhavam algum dinheiro. Ia desde os arrancadores e catadores na roça, os que levavam as cargas

para o engenho, botador d’água no engenho, tangedor de animal na bolandeira, raspadeiras, tiradeiras

de goma, prenseiro, forneiro e aqueles que vinham pra dar uma ajuda. Portanto era preciso bastante

comida inclusive muito café e meu pai dizia que o lucro da produção ia embora só no café servido aos ajudantes.

O pagamento pelo engenho era feito com parte da farinha e goma que fora produzida.

Lembro que a cada quatro quartas (medida quadrada, grande, feita de tábua, cheia até formar

uma pirâmide), uma quarta era do dono do engenho.

Para pagar aos trabalhadores e algumas despesas com a alimentação, vendia-se parte da produção a

compradores no local mesmo, a preço muito baixo ou levava em lombo de burro para ser vendida

nas feiras livres das cidades da região a preço melhor. O preço caia muito devido a grande oferta

no tempo das farinhadas. E ainda era necessário deixar em casa uma parte para ser consumida até

a próxima safra o que nunca era suficiente. A goma sempre acabava muito antes. Para o pequeno

produtor assim como meu pai, lembro dele dizer que o lucro não compensava tanto trabalho.

Em tempos de farinhadas meu pai sempre trabalhou nos engenhos, prensando massa ou torrando

a farinha, com diziam (forneiro). Mas na farinhada dele não fazia esses serviços, alugava outras pessoas.

Existia uma grande produção de farinha em Portalegre e era conhecida por ser a melhor da região.

Atualmente por lá não se planta mais a mandioca e os engenhos se acabaram. Mesmo que se fizesse

a produção da mandioca não teria um engenho nem pessoas para trabalhar e chegar ao produto

final. Só existe pequena produção nos “munturos” das casas e alguma pequena engenhoca para se

chegar a pequenas tapiocas feitas em fogão à gás.

Hoje o que predomina na região é a produção do cajú.

É isso aí, o texto ficou grande mas relembrei muita coisa, e não podemos esquecer o passado.

Obrigado por nos fazer lembrar de coisas boas.

Valeu, grande escritor carrazeirense!

Abraço,

Pedro Neto”

Vejam as fotos do arquivo de Pedro Neto sobre as Farinhadas.








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