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sábado, 7 de outubro de 2017

"Tempo Perdido"

Cartas revelam que Proust pagou por resenha elogiosa à obra-prima 'Swann'

Mario Sergio Conti 




O enredo rocambolesco faria boa figura em "À Procura do Tempo Perdido", um romance cheio de coincidências e desenlaces extravagantes. Mas saiu no "Guardian", na semana passada: Proust pagou por resenhas elogiosas a "Do Lado de Swann", o primeiro tomo de sua obra-mestra.

É uma boa notícia para corruptores e profissionais do moralismo. Um Odebrecht agora pode dizer: "Como Proust, dei um dinheirinho para obter um parecer favorável". Um Dallagnol justificaria o reajuste no preço de suas palestras se pusesse o escritor no PowerPoint.

Surgiu no mercado de livros antigos um dos quatro exemplares existentes de uma tiragem especial da primeira edição de "Swann". Feito com papel de fibra de amoreiras, ele será leiloado pela Christie's no fim do mês. Avalia-se que poderá ser arrematado por R$ 2 milhões.

Até aí, é só fetiche de milionários metidos a refinados. Ocorre que havia dentro do livro cartas do escritor a seu editor, Louis Brun. Elas registram o incentivo de Proust para que pagasse pela publicação de resenhas enaltecendo "Swann".

As resenhas saíram na primeira página do "Figaro", o jornal mais respeitado de então, e do vetusto "Journal des Débats". Proust pagou o equivalente a cerca de R$ 5.000 pelas duas. Ele mesmo as escreveu, a mão, mas orientou o editor a datilografá-las, para apagar rastros da autoria.

Proust classificou seu romance de "pequena obra-prima" e "sopro de ar fresco entre vapores soporíferos". Comparou-se a Dickens e disse que o que o autor "via e sentia é totalmente original". O livro, para o autorresenhista, sugeria "a quarta dimensão dos cubistas".

Vexames de um vaidoso? Não. Ele só escreveu verdades: o romance é tudo isso e algo mais. E Proust era um homem prático. Depois que todos os editores respeitados —Gide à frente— rejeitaram "Swann", pagou para que fosse publicado. Sabia do seu valor e queria ser lido.

Ele tinha pais ricos e nunca trabalhou. Porém, passou a vida escrevendo. Grã-fino e dândi, não era indolente. Procurou, padeceu e perseverou até, já velho, descobrir sua vocação. Mas, desde os 21 anos, quando criou a revista "Le Banquet", sabia do papel lubrificante do dinheiro nas engrenagens da vida literária.

Sabia, em suma, que parte das resenhas era paga. Tinha também consciência que "Tempo Perdido" era uma invenção radical, o que tornava difícil a sua fruição. Ainda mais porque era uma obra em andamento, e mesmo ele não tinha ideia da extensão e nem de quando a terminaria.

Como não era ingênuo, pagou pela sua divulgação. As suas relações com o dinheiro são um dos atrativos da sua copiosa correspondência. Ela consiste de 21 volumes com 5.000 cartas, as quais, se estima, representam apenas 5% das que de fato escreveu e enviou.

Volta e meia surgem novas cartas, que movimentam a Indústria Proust. Ele é o autor mais estudado na França. Foram escritas quase cem teses universitárias a seu respeito nos últimos 20 anos, e outras 30 estão sendo feitas. Fora dúzias de biografias e milhares de ensaios.

É impossível acompanhar essa linha de montagem, que tende a gerar estudos irrisórios. Uma de suas últimas descobertas, feita por um americano, é que são citadas 260 plantas diferentes em "Tempo Perdido". Não deixa de ser curioso —e só isso.

Nesse panorama, às vezes surgem coisas interessantes. Há pouco, por exemplo, foram publicadas 23 cartas que Proust escreveu a uma vizinha. Não se sabia absolutamente nada sobre Marie Williams, uma senhora que tocava harpa e era casada com um dentista americano.

Nas cartas, ele reclama do barulho, lhe envia flores, explica "Swann", fala de amigos mortos na Primeira Guerra e do bombardeio de catedrais. Na suavidade, na gentileza, e sobretudo na inteligência, se vislumbra um grande artista enfrentando o cotidiano.

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