Almanaqueiras: ou não queiras.

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quarta-feira, 5 de julho de 2017

Tem racismo e manutenção de hierarquias sociais nessa história.

Desagravo a Lima Barreto 

Marcus Faustini


Aquele que foi um dos principais narradores da cidade que se expandiu é pouco celebrado e estudado


Todas as homenagens a Lima Barreto que acontecem este ano devem ser declaradas atos de desagravo ou não serão homenagem alguma. O escritor que iniciou a linhagem de autores que expressam a expansão da cidade ainda é invisível dentro dela. A paixão de Lima em narrar a cidade popular que nascia encarou com coragem aqueles que se encantavam com a promessa de sermos um simulacro parisiense combinado estranhamente com valores de segregação. Nem o bairro das Laranjeiras, onde nasceu, celebra o vínculo que possui com seu filho escritor.

Estou lendo “Lima Barreto, triste visionário”, biografia escrita por Lilia Moritz Schwarcz e editada pela Companhia das Letras — uma aventura com mais de 500 páginas. Algumas leituras provocam força no coração, fazem vibrar o pensamento e produzem alegria ao espírito. As questões que trago para a coluna desta semana foram instigadas pela leitura do primeiro capítulo. Afonso Henriques de Lima Barreto, negro, filho de uma professora com um tipógrafo, nasceu numa casa modesta da Rua Ipiranga, em maio de 1881, no bairro de Laranjeiras. A pesquisa do livro mostra que, naquela época, o bairro era dividido entre uma elite, em busca de “bons ares” e proximidade com o poder, que marcava com gosto, no exterior das casas, suas diferenças com as pequenas casas e cortiços que coexistiam no bairro. Imigrantes italianos, mestiços, pardos, negros livres, libertos, recém libertos etc. davam o tom da diversidade às ruas, mas com fronteiras claras através de uma hierarquia muito definida de uso dos espaços na vida social do bairro. Cada um em seu lugar — como enfatiza a autora na biografia.

Tenho caminhando pela Rua Ipiranga com frequência. Ando abrigado provisoriamente no bairro por conta de uma mudança de residência em andamento. O bairro onde um de meus tios, ocupando um casarão velho, iniciou sua vida de estofador de sofá e uma de minhas tias conseguiu comprar uma quitinete — o que fez disparar uma de minhas infinitas fantasias de moleque, como escrevi no livro “Guia afetivo da periferia”. Acreditava que ela era “a tia rica” por morar em Laranjeiras e ser uma das únicas da família a ter o banheiro e a pia da cozinha todos azulejados. O fato é que “todo moleque de periferia acredita que tem uma tia rica”. Andar por lá agora é ver que aquela Laranjeiras de Lima Barreto ainda continua a existir. Contém todas as contradições da história do Rio de Janeiro: a sua diversidade e a tentativa de inviabilizar ou subalternizar os elementos populares.

Felipe Botelho Corrêa, professor da King’s College London, que falará na próxima Flip sobre Lima Barreto, em uma conversa recente que tivemos em Londres, acentuou que o autor pôs no papel cenários de uma cidade em expansão urbana e deu vida a personagens que surgiam com essa nova configuração. O argumento do professor é que o escritor faz essa cidade, com sua obra, ao menos nas letras, tornar-se policêntrica. Não apenas pelos ambientes urbanos expandidos — os subúrbios — que dedica suas histórias, mas também pelas observações de seus narradores e personagens acerca das miudezas do cotidiano urbano. Lima, para Felipe, embarcou numa cruzada contra uma república de letras limitadas às áreas centrais, de uma elite que encapsulava os paradigmas culturais de derivação europeia adaptados à nova vida urbana carioca. Frivolidade e até defesas de ideias de branqueamento da população marcaram as ideias que Lima combateu. O escritor foi aquele que iniciou de forma mais vigorosa a expressão literária da vida e personagens do subúrbio que circulavam a cidade.

Não há como negar que Lima Barreto foi escondido da imaginação carioca. Não falo aqui de um ou outro programa de TV, geralmente nas educativas, ou de artigos de cadernos de cultura em dias de menor circulação. Ou da persistente positiva dedicação de pesquisadores e grupos de teatro que mantiveram Afonso Henriques e sua obra presentes em círculos importantes. Mas aquele que foi um dos principais narradores da cidade que se expandiu é pouco celebrado e estudado. Poucos pontos do Rio de Janeiro estão vinculados a ele. O motivo não é algo que paira no ar e não conseguimos identificar. Sabemos que falar de Lima é falar da diversidade dessa cidade, de sua característica popular, mas também de todas estruturas voltadas para esconder esses elementos.

Em 2011 um busto do autor foi inaugurado na Rua do Lavradio, e uma escola pública na comunidade do Fumacê, em Realengo, também leva seu nome. É pouco para o que Afonso Henriques de Lima Barreto andou, circulou e expressou dessa cidade. Sua obra vai além de um incompreendido marginal da época. Homenagens ao autor sem desagravo é usar sua imagem para esconder que sempre colocamos Lima como um autor menor por conta de nossa estrutura social baseada em estabelecer fronteiras firmes com aqueles que ousam subverter a hierarquia social. Tem racismo e manutenção de hierarquias sociais nessa história.

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