Almanaqueiras: ou não queiras.

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quinta-feira, 20 de julho de 2017

"Se não têm pão, que comam brioches".

Muito além de Clarice: as frases famosas que nunca foram ditas

Sergio Rodrigues 



O romance "Viva o Povo Brasileiro", de João Ubaldo Ribeiro, começa com o alferes baiano José Francisco Brandão Galvão, jovem herói da Independência, levando chumbo dos soldados portugueses que desembarcam na ilha de Itaparica no dia 10 de junho de 1822.

Instantes antes de morrer, à falta de outras testemunhas, Brandão Galvão fala às gaivotas. Embora seja analfabeto, fluem de sua boca "alexandrinos sinfônicos, ordens inversas arrebatadoras, proparoxítonas troantes como tonéis martelados, metáforas cujos contornos jamais se dissolviam, adornando o ar de esculturas gelatinosas e frementes".

Sem ter sido registrada por ninguém, a ode à liberdade proferida pelo alferes moribundo sobreviveu na voz dos declamadores e na memória do povo. É um exemplo do fenômeno das palavras imaginárias.

A esta altura, poucos ignoram que não se lê em nenhuma das histórias de Sherlock Homes a frase "Elementar, meu caro Watson". E que, no filme "Casablanca", o Rick de Humphrey Bogart jamais diz a seu pianista "Play it again, Sam".

Também não há em "Guerra nas Estrelas" o momento em que Darth Vader pronuncia "Luke, eu sou seu pai". E, definitivamente, a rainha Maria Antonieta nunca aconselhou o povo faminto a variar sua dieta com o infame "Se não têm pão, que comam brioches".

Hoje, nas redes sociais, o fenômeno das palavras imaginárias e das falsas atribuições chegou a um extremo cômico em que, de tanto enganar, engana cada vez menos. Só com muita ingenuidade é possível acreditar que uma atrocidade como "Todos os dias, quando acordo, vou correndo tirar a poeira da palavra 'amor'" tenha a autoria de Clarice Lispector.

Menos conhecido é o fato incontestável ""e um tanto perturbador"" de que o pensador francês Voltaire nunca tomou da pena para escrever uma de suas máximas mais famosas: "Discordo do que você diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-lo".

Cada um dos casos acima tem uma explicação. No entanto, com exceção do exemplo clariciano, um abuso entre tantos cometidos em nome da escritora, e da tirada dos brioches, que parece ter sido só uma calúnia política que colou, o fenômeno das palavras imaginárias não costuma estar a serviço da mentira deslavada.

É antes fruto de um processo de edição, quase sempre anônimo e não deliberado. Tem a função de condensar e dar o melhor foco possível a algo que, se não disseram com palavras semelhantes, os tais personagens bem poderiam ter dito ""ou, como no caso ubaldiano, deveriam ter dito, se a vida não fosse essa confusão cheia de analfabetismo e gaivotas.

Sim, Sherlock Homes pronuncia "meu caro Watson" e "elementar", só não junta as duas coisas no mesmo fôlego. As verdadeiras frases de "Casablanca" e "Guerra nas Estrelas" são bastante semelhantes às que terminaram famosas.

O caso de Voltaire é o mais curioso. A autora da máxima que lhe atribuem é a escritora inglesa Evelyn Beatrice Hall, que assinou com o pseudônimo S.G. Tallentyre uma biografia do filósofo francês chamada "Os Amigos de Voltaire".

Admiradora do homem, a intenção da biógrafa parece não ter sido competir com ele, mas, conforme explicou, apenas parafrasear o que disse Voltaire no "Ensaio sobre a tolerância": "Pensem por si mesmos e deixem os outros gozarem do privilégio de fazer isso também".

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