Almanaqueiras: ou não queiras.

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quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

qual será a repetição em curso no momento?

Mesmo conhecendo as consequências de nossos atos, não deixaremos de agir

Contardo Calligaris 


Resultado de imagem para mosaico do Juízo Final na igreja de Torcello (Veneza),

Todos conhecemos a história da rã e do escorpião (é uma fábula recente, parece que surgiu nos anos 50 do século passado).

O escorpião, querendo atravessar o rio, pede à rã que ela o carregue nas costas. A rã responde que ela não é boba: o escorpião vai picá-la. O escorpião argumenta que, se ele picasse a rã, eles afogariam juntos –e ele não quer morrer, certo?

A rã, convencida, topa carregar o escorpião, o qual, no meio da travessia, pica a rã. Os dois vão morrer afogados. A rã estranha: você também vai morrer. E o escorpião conclui: não posso fazer nada, querida rã, picar é minha natureza.

O roteiro é um pouco capenga. Se fosse a rã, eu recusaria o pedido do escorpião porque, afinal, um escorpião avisado esperaria termos chegado do outro lado antes de me picar. Mas, para que a história funcione, imaginemos que o escorpião possa picar a rã só quando ambos estiverem no meio do rio.

A fábula quer nos dizer que a ruindade está na "natureza" da gente e é irresistível. E há um corolário, que é o que me interessa hoje e que diz: como o escorpião, podemos conhecer perfeitamente as consequências ruinosas de nossos atos, não por isso deixaremos de agir.

Se você fizer "isso", será privado de lanche por um mês ou irá para a cadeia por um ano e para o Inferno para sempre. Por mais que a gente esteja convencido dessas consequências, agiremos sem levá-las em conta. Acrescente à lista o câncer no pulmão para os fumantes, a cirrose hepática para quem bebe demais, o aquecimento global –e, claro, o afogamento para quem pica a rã que o carrega.

Já ouvimos as respostas possíveis: vai que, quando a rã afundar, eu aprenda a nadar na hora, vai que a polícia não me pegue –sem contar que há muitos que fumam e estão ótimos"¦ O futuro não é sempre incerto? O que significa "conhecer" as consequências futuras de nossos atos?

Agora, contemple o mosaico do Juízo Final na igreja de Torcello (Veneza), ou o Juízo Final na capela Scrovegni, em Pádua, ou na Sistina, em Roma. É bem provável que o homem medieval e o renascentista tivessem uma experiência do tempo diferente da nossa –uma experiência realmente cristã, no sentido em que a primeira vinda do Messias já teria abolido o tempo.

Claro, o tempo linear existe para o cristão: podemos pecar e "depois" nos arrepender, sermos perdoados, evitar o Inferno passando um "período" no Purgatório etc. Mas, de novo, considerem aquelas representações gigantescas do Juízo Final: para nossos antepassados, o Juízo não é uma promessa nem uma ameaça, ele é agora, lá, na nossa frente. Ao pecar, nós temos a experiência da danação.

O escorpião medieval e renascentista, na hora de picar a rã, não estava imaginando seu afogamento futuro, ele já estava vivenciando seu afogamento. Mesmo assim, ele picou (ou pecou).

Pensei nisso assistindo a "A Chegada", de Denis Villeneuve, em que os terrestres recebem a língua dos ETs como presente. Gostei do filme porque admiro os antropólogos de campo, que conseguem aprender línguas totalmente desconhecidas de tribos nunca contatadas antes.

Quem fala a língua dos ETs muda sua experiência do tempo: será que seríamos muito diferentes se o tempo para nós não fosse linear? Ou seja, se o passado e o futuro habitassem simultaneamente o nosso presente?

No filme, supõe-se que isso nos torne mais sábios. Eu tendo a acreditar que o escorpião, mesmo vivendo seu afogamento na hora de picar, continuaria picando a rã. O assassino continuaria matando, embora sentindo o nó da forca se fechando no seu pescoço.

Se o conhecimento do futuro não garante nenhuma melhora, será que o passado funciona melhor? Afinal, tem aquela ideia de que é bom conhecer a história para evitar a repetição. Pois bem, não exageremos no otimismo.

Está em cartaz um filme estranho de Marco Bellocchio, "Sangue do Meu Sangue", em que coexistem duas histórias, pelas ruas e os porões de Bobbio (uma linda comuna medieval da qual já foi dito que ela é a paisagem de fundo da Mona Lisa de Leonardo –vai saber).

Moral da fábula de Bellocchio (para mim): o passado insiste no presente, mas não porque ele nos "ensinaria" a ser diferentes e melhores. Ele insiste porque se repete, só que, como dizia Marx, ele tende a se repetir primeiro como tragédia e depois como farsa"

Aliás, nestes dias, uma pergunta me tira um pouco de sono: qual será a repetição em curso no momento?

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