Almanaqueiras: ou não queiras.

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quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

ao menos no Natal, espera-se que haja uma reunião de família.

Para aguentar o Natal, é preciso achar graça na patologia bizarra da família 

Contardo Calligaris

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As reuniões de família não acontecem só no Natal. Há outras festas religiosas e há casamentos, enterros, aniversários etc. Mas um ditado italiano sugere: "Natale con i tuoi, Pasqua con chi vuoi" –Natal com os teus, e Páscoa com quem você quiser. Ou seja, ao menos no Natal, espera-se que haja uma reunião de família.

No próximo fim de semana, dias 24 e 25, muitos passarão por uma reunião familiar, provavelmente grande e festiva. Para alguns, serão duas –por exemplo, sábado à noite com os pais e domingo ao meio dia com os sogros.

Os órfãos e sem filhos, divorciados ou celibatários, receberão convites piedosos para eles se agregarem à festa da família de amigos e conhecidos. Para ser convidado, não é preciso ser cristão: acreditar um pouco no Papai Noel basta.

Alguns podem encarar essa perspectiva de jantares e almoços com alegria. Mas, desde o começo da semana, vejo e ouço sobretudo pessoas que tentam se precaver contra o desastre que eles anteveem.

Se houver crianças, o evento será resgatado pela alegria delas na hora da distribuição dos presentes. Sem isso, mesmo nas famílias em que todos declaram se gostar, a reunião é um momento delicado, que quase sempre revela a complexidade dos laços familiares: as rivalidades, as frustrações de não ser amado como a gente queria, a estranheza que nos causa a proximidade de parentes que não têm nada a ver conosco".

Ficar é extenuante. Não ir ou ir embora cedo parece imperdoável. Meu conselho é participar com dedicação, pois a regra geral diz: só quem enxerga e encara a patologia bizarra da família consegue aguentar sem desespero uma festa dessas.

Ainda dá tempo: antes do Natal, tente assistir a "Sieranevada", do romeno Cristi Puiu. A reunião de família de "Sieranevada" é o aniversário de um luto, mas o filme vale para qualquer festa familiar.

Nota: os cinéfilos apreciarão uma câmera que está completamente ao serviço da vontade de nos fazer sentir a clausura do apê e da família. Em 2015, em "O Filho de Saul", o húngaro László Nemes filmou, também de uma maneira inesquecível, a clausura dos campos de concentração. Não deve ser uma coincidência que dois filmes geniais na maneira de mostrar a opressão apareçam ambos do outro lado da antiga cortina de ferro.

Enfim, depois de assistir a "Sieranevada", no estacionamento, escutei a conversa de duas moças. Uma dizia que a história do filme poderia ser contada em 30 minutos. A outra dizia que, de fato, ela tinha gostado do filme porque, confessava, tinha reconhecido situações da sua própria família.

De fato, os que acham que família é só alegria não gostarão de "Sieranevada". Mas o filme é imperdível para quem enxerga nele a verdade de qualquer família, a começar pela sua própria.

Para os que souberem se ver na tela, o filme será a preparação perfeita para a ceia ou o almoço natalinos. Reconhecendo-se na trivialidade dos afetos e das conversas, eles conseguirão rir do drama farsesco que é a família –e aguentarão bem o suplício festivo.

Você já sabe que, neste Natal, haverá aquele tio que frequentou as manifestações do "fora, Temer", e ele discutirá com outro tio que, na hora do panelaço, gritava "fora, Dilma". Também comparecerá um primo que pede a volta dos militares.

Estará lá um sobrinho que acredita em tudo o que ele lê na internet e jura que existe um grande complô, do 11 de setembro a Fukushima –tudo obra de poderes ocultos. A conversa deslizará para o francamente pornográfico quando uma tia acusará um tio de traí-la com a vizinha. No fim, chegará uma sobrinha levando uma amiga trêbada e desmaiada.

O discurso da reunião familiar é sem objeto nem referência; ele tem só duas (grandes) funções: 1) expressar as emoções que repetimos desde a infância (ou seja, expressar nossa neurose infantil) e 2) lutar para manter o outro na escuta: hello, você está me ouvindo?

A reunião de família pode ser cômica? Sim, e seria bom que achássemos risível o ruído cotidiano de nossos afetos familiares. "Sieranevada", aliás, é uma comédia que pode nos ensinar a descobrir a comédia da nossa vida. Tem mais: se você aguentar "Sieranevada", está garantido que você aguentará seu almoço ou seu jantar de Natal.

Agora, depois do almoço ou jantar, encontre-se com amigos – diferentes dos parentes, eles são a companhia que você escolhe. Feliz Natal.

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