Almanaqueiras: ou não queiras.

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quarta-feira, 10 de agosto de 2016

que Martinho recupere o nosso ânimo. estamos necessitados.

Martinho da Vila lança disco em que exalta a esperança

‘De bem com a vida” é o primeiro álbum com leva de inéditas do cantor desde 2007

POR LEONARDO LICHOTE

Martinho: disco tem metade de músicas inéditas Foto: Leo Martins / Agência O Globo

RIO - Na voz de Martinho da Vila, a mulher chega em casa massacrada pelo peso do trabalho, dos problemas. A dureza da vida se expõe ali, em tintas de um realismo cotidiano: “Tô cansada, tô debilitada/ Tive que ralar depois do expediente/ Matutamos, discutimos, planejamos pra solucionar/ Uma questão pendente”. Aos poucos, o canto dolente amolece as palavras numa ducha morna, num pedido de colo, e desemboca, cheio de malícia e esperança, no verso que dá título à música: “Amanhã é sábado/ Vai ter tempo quente, amor/ Amanhã é sábado/ Serei imprudente, amor/ Amanhã é sábado/ Te farei candente, amor”. O caminho da realidade pesada à leveza da promessa de futuro, sintetizado em “Amanhã é sábado”, é a linha central que guia o novo disco do compositor de 78 anos — como expõe seu título, “De bem com a vida” (Sony).

— O Brasil tá meio baixo astral. Nosso momento político tá muito complicado — avalia o compositor. — Pensei muito nisso quando estava fazendo o disco, a gente que é de criação sempre acaba sendo influenciado pelas coisas à nossa volta. Eu quis então fazer um disco contra isso, um disco pra cima. Já tinha “De bem com a vida” (“E o porvir?/ Porvir está por vir/ E o futuro?/ O futuro se constrói hoje com muito mais verdade”).

“De bem com a vida” é o primeiro disco com uma leva de inéditas de Martinho desde 2007. Sete das 14 faixas nunca foram lançadas, outras foram gravadas por artistas como Roberta Sá (“Amanhã é sábado” está no álbum mais recente da cantora, de 2015) e Simone (“Saravá! Saravá!”, em 2004, e “Danadinho danado”, em 1995) ou por ele mesmo, no passado, como “Choro, chorão” e “Muita luz”. Atravessando o disco, o sentimento sintetizado no clássico “Canta canta, minha gente”: “A vida vai melhorar”. Esse caráter “pra cima”, como descreve o compositor, aparece já no título de algumas canções, como “Saravá! Saravá!”, “Muita luz”, “Alegria, Alegria minha gente!” (feita para sua filha Alegria) e a faixa-título. E nos versos de outras. “Sou brasileiro”, por exemplo, expõe o desejo de um futuro melhor para o país (“Alô Brasil/ Quando é que vai se superar/ Da bola ser campeão/ Pra gente comemorar/ Crescer com isonomia/ Lustrar a Democracia/ Do mundo ser o celeiro/ Na ONU ter bom conceito/ Pro povo bater no peito e gritar/ Sou brasileiro”).

Musicalmente, a esperança de Martinho se sustenta sobre a crueza delicada de violão, cavaquinho e percussão. Apenas “Muita luz” foge desse formato, trazendo a participação de João Donato (teclado), Jorge Mautner (violino, com direito a citação a “Jesus alegria dos homens”, de Bach) e Arthur Maia (baixo). A ideia da sonoridade mais enxuta surgiu a partir das apresentações que Martinho fez em 2015 dentro da série Inusitado, idealizada por André Midani, que acabou se tornando o produtor de “De bem com a vida”.

— Fiz o show eu e eu mesmo — brinca Martinho. — Gostei daquilo e pensei num disco assim. Mas ao vivo é outra coisa, tem outros atrativos, não é só o som. No disco, ia ficar pobre. Então a ideia foi um disco só de violão e cavaquinho, tinha até nome: “Martinho violão e cavaquinho”. Depois, foi evoluindo e chegou no “De bem com a vida”.

A abertura guarda esse conceito original. “Escuta, cavaquinho!”, parceria de Martinho com Geraldo Carneiro, traz o violão falando para o cavaquinho (“Que somos seres que se amam tanto/ E que misturaram alegria e pranto/ Eu violão, você cavaquinho/ Eu na canção, você no chorinho”). As outras o compositor escolheu pinçando pérolas pouco lembradas de seu baú e inéditas dentre as que fez nos últimos anos, quase todas finalizadas recentemente, como “Alegria, Alegria minha gente!”:

— No Inusitado, tinha uma hora em que cantava as músicas que fiz para meus filhos, e Alegria era a única que não tinha. Midani disse: “Trata de fazer”.

Ele lembra a origem de outras:

— “Muita luz”, minha e de Donato, é uma regravação (de 1985). Ele me chamou pra tomar umas na casa dele, mas eu já tinha tomado na véspera, não ia beber mais. Cheguei e, quando ele me ofereceu algo, eu disse: “Aqui não entra mais bebida, só muita luz”. E começou a sair “Muita luz” daí. Já “Daqui, de lá e de acolá” fiz com Francis (Olivia Hime também é uma das autoras) pra abrir um show em Luanda, então cantamos essa proximidade entre Brasil e Angola.

A rota Brasil-África é feita também em “Do além” (de Arthur Maia e Martinho), como deixam claros o batuque e o coro já na sua abertura. A letra aprofunda a mestiçagem: “Então misturei coladeira com samba/ Tirando onda e dançando kizomba/ Lembrei de uma noite casa de bamba”. Além da referência à “Casa de bamba”, outro clássico de Martinho é citado no disco, de forma menos direta:

— Fiz duas músicas que partem de “Disritmia”. Uma é “Desritmou”, com Carlinhos Vergueiro, sobre um amor antigo que volta desritmado (“Marcamos um novo encontro/ Tentamos recomeçar/ Porém quando nos beijamos/ Eu não senti mais nada”). Outra é “Amanhã é sábado”, na qual imaginei como seria se quem chegasse em casa cansado fosse a mulher.

O outro convidado do disco é Criolo, que participa de “De bem com a vida” e “Alegria, Alegria minha gente!”.

— Como o disco tinha muita coisa falada, meu filho Preto sugeriu Criolo — conta Martinho.

Martinho tem outros parceiros no álbum — Ivan Lins, Zé Catimba, Marcelinho Moreira, Fred Camacho e Sereno. E há mais parcerias na fila. João Bosco e ele ficaram de se encontrar pra fazer algo para o próximo disco do mineiro. Hamilton de Holanda e ele têm planos de compor juntos, e há novas com Moacyr Luz para sair. Mas a maciez com que as canções saem da boca de Martinho não reflete o quanto ele pena para escrever hoje:

— Fazer letra é uma tortura. Melodia é bem mais fácil. Na melodia você tem uma variedade enorme de caminhos com as notas, mas na letra você tem um vocabulário que não é tão vasto. Poesia é achar a palavra certa. E é cada vez mais difícil. Tem músicas minhas que não faria hoje, como “O pequeno burguês”, não gosto de umas rimas... Mas que bom que eu fiz, né? Fera foi Noel Rosa. Morreu com 26 anos, se vivesse mais dez ia ter feito tudo. Não ia precisar nem de mim, nem do Chico, de ninguém.

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