O DIREITO À INSUBMISSÃO ANGUSTIA OS SUBMISSOS
Vandeck Santiago

Em um certo dia de 1960 um ministro sugeriu ao presidente francês Charles de Gaulle que chegara a hora de prender Jean Paul Sartre. O filósofo fazia pronunciamentos políticos cada vez mais intransigentes, estava sempre nas ruas em atos contra o governo e acabara de assinar um manifesto que defendia o direito à insubmissão na Guerra da Argélia (1954-1962). A polícia queria prendê-lo. Nas ruas, manifestantes de direita gritavam “Morte a Sartre!”. Era o melhor momento de colocá-lo no xilindró. De Gaulle rechaçou a sugestão com uma frase que se tornou célebre: “Não se prende Voltaire”.
O sentido da frase não se restringe ao tamanho intelectual que Sartre tinha no momento; ela é reveladora de como a França leva seus intelectuais a sério. Lembro disso todas as vezes que vejo no Brasil ataques que apontam em sentido contrário. No último domingo, por exemplo, ao ouvir declarações do ministro da Cultura, Marcelo Calero, sobre o cineasta brasileiro Kleber Mendonça Filho, o que de imediato me veio à memória foi aquele ministro francês sussurrando ao presidente: “Prenda o Sartre!”.
O ministro Calero mostrou-se indignado pelo protesto realizado por Kleber e equipe do filme Aquarius no Festival de Cinema de Cannes, contra o que na opinião deles foi “um golpe” no Brasil (o afastamento de Dilma e subida ao poder de Michel Temer).
“Acho ruim, em nome de um posicionamento político pessoal, causar prejuízo à reputação e à imagem do Brasil”, disse o ministro, que ainda qualificou o protesto de “quase infantil” e “até um pouco totalitário”. Se um militante dissesse isso, até se entenderia, mas saída da boca de um ministro da Cultura a opinião ressoa como, com licença da palavra, um disparate.
Ontem, a Folha de S. Paulo, em sua página na internet, noticiou o assunto, destacando resposta de Kleber feita por meio de mensagem em uma rede social. O cineasta postou matéria sobre editorial do The New York Times, intitulado “Medalha de ouro do Brasil para corrupção”, que se refere à ficha suja de ministros do governo interino de Temer. Disse: “Caro ministro Calero, talvez isso aqui redefina sua noção de o nosso país passar vergonha internacionalmente. O The New York Times é o mesmo jornal de influência mundial que incluiu meu filme anterior - O som ao redor -, fruto do Minc, entre os 10 melhores de 2012, um orgulho para a cultura brasileira. Abs, Kleber”.
O exemplo de Sartre que mencionei no primeiro parágrafo é comumente citado no Brasil como se o episódio houvesse acontecido nos idos agitados de 1968 na França, com os protestos estudantis. Na verdade ele é dos idos agitados de 1960, com a Guerra da Argélia, que levou a sociedade francesa a um radicalizado debate. De lá podemos mencionar outro caso, envolvendo um filósofo francês nascido na Argélia, Jacques Derrida. Em 1981 ele deu um seminário na então Tchecoslováquia, promovido por uma entidade que apoiava intelectuais perseguidos pelo regime comunista. Foi preso pela polícia tcheca, fichado e até fotografado com uniforme de presidiário. A acusação (uma montagem) era que estava portando maconha. Pois bem, o que fez o presidente François Miterrand? Agiu pessoalmente para libertar Derrida, e rapidamente conseguiu que isso acontecesse.
Como sei a má fé que tem povoado as discussões nesta área no Brasil de hoje, permitam-me repetir que não estou comparando pessoas. Fazer isso seria uma tentativa grosseira de manipulação que não faz ao jus ao cineasta nem aos filósofos. O que estou fazendo é comparando o apreço pela cultura e o respeito aos intelectuais.
O protesto da equipe de Aquarius aconteceu no último dia 10. Como 20 dias depois ele continua sendo contestado por um ministro da Cultura recém-empossado (e cheio de problemas que suponho mais sérios para resolver), a imagem que passa é que o ato aparentemente ainda não foi digerido dentro do governo. Se o gesto se referisse apenas ao passado, já seria preocupante; mais preocupante ainda, porém, é se ele estiver sinalizando algo para o futuro.
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