Paixão de Cristo no Poço – lembranças minhas e alheias
por Samarone Lima

Quando morei no Poço da Panela (bairro do Recife), de 2000 a 2005, aconteceram tantas coisas malucas, que meus leitores do JC on line, para onde eu escrevia na época, acreditavam que os textos eram fruto de uma imaginação prodigiosa.
A verdade, no Poço, deixa qualquer Garcia Márquez chupando pirulito. É um mundo à parte. Não é à toa que quem bebe daquela água, nunca deixa de voltar, como é o meu caso.
Pois bem. Numa dessas semanas santas da vida, passou por mim um sujeito de cabelos ralos e brancos, com uma pastinha na mão, me olhou de norte a sul e profetizou:
“Serás o Cristo da Paixão do Poço”.
Ele tinha um olhar fulminante de diretor de teatro que descobre um talento em estado bruto e estava retomando uma Paixão realizada anos antes, que tinha dado errado por motivos, digamos, “Pocences”.
Os motivos foram simples:
1. O soldado escalado para dar umas chicotadas de leve em Jesus Cristo, Marco Careca (excelente tirador de cocos em geral e quebra-galho como eletricista, mas vive mesmo como porteiro de um prédio), vestiu a roupa de romano e incorporou o espírito. Quando apareceu a figura do Jesus carregando sua cruz, não se fez de rogado. Começou a açoitar o pobre do personagem como se tivesse aparecido um inimigo de décadas.
“Devagar, Marco, isso é teatro!”
“Teatro porra nenhuma. Comigo a lenhada é na vera!”, respondeu Marco, descendo a chibatada.

2. Numa cena anterior, quando Jesus chegava num burrinho, já perto da venda de seu Vital, o clima estava bucólico, os figurantes todos fazendo seu papel, quando o burrico, sabe-se lá por qual motivo, deu uma disparada, atravessou o cenário, assustou figurantes e só parou à beira do rio, tirando todos de tempo;
3. Na cena final, Jesus foi falsamente crucificado. A cruz, foi fincada defronte à Igreja de Nossa Senhora da Saúde. Marco Careca, encarregado de prender as mãos do santo homem (logo ele), continuava se sentindo uma mistura de oficial romano e da SS. Amarrou as mãos do cristo com dois nós cegos. E com a força de um soldado romano. Em poucos segundos, as mãos do nosso Salvador começaram a ficar rôxas. Jesus começou a gritar;
“Marco, está apertado demais, me salva aqui!”
“Segura a tua onda, Cristo”, respondeu Marco.
Nesse instante, uma galera de uma comunidade vizinha, que tinha arenga com o Poço, chegou para guerrear, e começou um vale-tudo. Quando o pau cantava, a cruz começou a entortar e Jesus ficou num estado lastimável – com as mãos ficando pretas e torto.
“Ai, Jesus”, gritou, mas ele era o Jesus.
Foi salvo por alguém que sempre aparece nas horas mais improváveis: Naná, Luís Maúcha ou Duda “A Milhão”.
4. Depois disso, nunca mais teve a “Paixão do Poço”.
De formas que senti um calafrio quando o diretor me reconheceu como Cristo. Iria realizar um velho sonho, que era o de participar de uma peça de teatro ao ar livre, provando que sempre tive, sim, valor artístico em cima dos palcos. Mas lembrei de todas essas peripécias que Naná me contava a cada ano, mamando seu Carreteiro de 20 litros.
Declinei do convite, até porque Marco Careca está trabalhando num prédio bem perto de Seu Vital. Ele, quando bebe, costuma dizer que “navio de madeira também pega fogo”.
Dois anos depois daquela proposta, um grupo resolveu montar a “Paixão de Cristo do Poço” numa versão um pouco mais maluca. Eram os amigos que bebiam religiosamente, na venda de seu Vital.
Fizemos uma reunião na casa de Walter Barba, para distribuir os papéis, enquanto serviam umas cervejas, cachaças e whiskys os mais diversos.
Foi uma noite cheia de papéis trocados, acusações e risadas. Luis Diazepan não gostou de ter sido escolhido para interpretar o jumento. Na verdade, nada deu certo e sequer começamos a ler o texto. As críticas se multiplicavam, misturando o caráter de cada um com os problemas do papel. Grão de Bico queria ser Maria Madalena e Nossa Senhora. Era complicado. Ninha, Boy, eu, Naná, Oswaldo Titio, acho que Jorge Alberto – era uma profusão de péssimos atores com papéis que não se encaixavam.
Quando Marco Careca apareceu na janela, e perguntou se tinha vaga para “soldado romano” eu fingi uma escapada ao banheiro e fui tomar uma em Seu Vital.
“Esse negócio não vai dar certo”, disse o velho Vital.
Ele não erra uma. A Paixão do Poço ficou por ali mesmo. Hoje em dia, tomamos nosso modesto vinho e relembramos “aquele última Paixão de Cristo”, que se renova a cada ano, nos bairros os mais diversos do Recife, e pelo mundo afora.
A todos, boa Paixão.
Ps. aproveitem o feriadão para assistir “O sal da terra’”, filme sobre a vida e obra do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado (e sua grande companheira). Você vê todas as desgraças do mundo que ele fotografou e, ao final, por mais contraditório que pareça, sai do cinema cheio de esperanças. Emocionante é pouco.

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