Gisele pós Gilberto Freyre
Xico Sá - El País

Gisele, amor, nem imagina entrar nessa política toda. O que desejava mesmo era revelar como tu explicas o Brasil na ótica da crônica de costumes, algo muito mais importante, como escrevi numa publicaçãozinha chamada O Livro das Mulheres Extraordinárias, aqui como infinitas modificações. Algo assim, não sei o que tu achas:
Gisele ainda engatinhava, anos 1980, quando o sociólogo Gilberto Freyre alertava, no Recife, sobre tendências de costumes e novas concepções de feminilidade no Brasil.
Profético, Freyre descreveu como o norte-europeizante ou albinizante de beleza que começava a se destacar na tevê, nas revistas e passarelas. A mulher alta, alva, loira, cabelos lisos e corpo menos arredondado. Havia também um reflexo desse impacto nas ruas: a morenidade cedia à loirice artificial.
Era a nova concepção “ianque”, em contraponto à beleza brasileiríssima da mulher mais baixa, morena, cabelos negros, longos, crespos, cintura fina, peitos pequenos e a bunda grande.
Naquele momento, o autor de Modos de homem & modas de mulher citava apenas Vera Fischer como musa-mor dessa “nova mulher” que, de certa forma, resgatava a queda que o Brasil aristocrático tinha pelas bonecas francesas.
Mal sabia o bruxo de Apipucos que a menina que engatinhava em Horizontina se revelaria a referência e o modelo máximo de beleza brasileira na moda. O impacto eurotropical do Sul do país gerou Giseles em série no mercado fashion, embora nenhuma outra, jamais, tenha alcançado a mesma importância.
Na dialética do botequim, porém, o dilema proposto por Freyre continua rondando a cabeça do macho brasileiro. Há sempre algum canalha “nacionalista” em defesa de um tipo mais brejeiro, miscigenado, mignon. O assunto sempre dividiu as mesas. Com um detalhe: a avassaladora preferência feminina pelo “tipo Gisele”.
Em vez do alumbramento óbvio diante da beleza da top model que encantava o mundo, minha visão inaugural, quando estive frente a frente com Gisele, foi a da maioria dos homens do Brasil: fiquei achando que faltava alguma coisa. Trocaria fácil, fácil um tanto da elegância e competência na passarela por alguns quilinhos a mais. Muito gazela para o meu gosto.
Com toda a canalhice que é a façanha de dar uma nota para uma mulher que passa, como na brincadeira adolescente e porco-chauvinista, eu atribuí 5,5 para a moça. Que ousadia. Um traste feio como este cronista se atrevia a gigantesca e soberba impropriedade.
Que eu tenha direito ao sagrado perdão, Gisele, deixo aqui o meu mea-culpa. Aquela foi minha nota geral para as modelos da época, que definhavam de tão magras. Uma nota crítica e metonímica: confundi a parte pelo todo, portanto dei um 5,5 para a anorexia reinante no mundo.
Eu havia sido convidado pela Folha de S.Paulo, em 1997, para acompanhar Gisele no Morumbi Fashion e escrever uma crônica. Assim aconteceu nosso encontro. Eu era então um homem sério, um engravatado repórter de política. Um deslocado na moda, um homem de outro mundo, daí minha matutice estética.
Não poderia deixar de exaltar um rosto incrível, óbvio, uma comissão de frente, uns peitos que representavam um Brasil farto à Morumbi. A magreza de todo o corpo, porém, era equivalente aos grotões do país pré-Bolsa Família de Lula.
Depois, óbvio, fui entendendo que a Gisele ficou ligeiramente gostosa. Que era bela com aquele corpo mesmo, que tinha, sim, uma bunda que eu teimara em não perceber, confundindo a parte pelo todo dos desfiles – um esqueletismo que não batia com a minha fome ancestral.
O certo, caro Freyre, é que, mundo afora, Gisele reina como nossa Pelé loirissimamente bela. Não te preocupes, a beldade, paradoxalmente, leva o Brasil miscigenado à passarela, te garanto. Ela anda bonito demais, como na poesia suburbana de quem equilibra uma lata d’água na cabeça. Hoje daria nota 9,9 para Gisele. Quando ela ganhar alguns quilinhos, quem sabe, eu viro Carlos Imperial, grande canalha e artista do patropi pré-Gi e grito: “Dez, nota dez!”.
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