Almanaqueiras: ou não queiras.

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quinta-feira, 2 de abril de 2015

a bronca é livre

Recentemente, estive em Nova York por duas semanas, como contei no meu último post. Já escrevi sobre o mais importante que aconteceu por lá. Agora talvez seja a hora de falar da difícil volta.


Luiz Schwarcz 



Desde o plano Real, da estabilidade econômica do governo FHC, da esperança social trazida pelo governo Lula, e até mesmo dos primeiros anos com a tentativa desenvolvimentista de Dilma Rousseff, não esperava mais ter a sensação que tive ao chegar no Brasil. Não pensava que seria incapaz de reconhecer o chão em que piso, não imaginava que teria inveja dos meus colegas editores americanos, que vivem basicamente de seus erros e acertos — não dependem do cenário externo, não precisam pensar em que país se encontram a cada livro que compram ou decidem publicar. Meus colegas olham para o cenário externo para calibrar suas ideias, aferir se uma edição deve ser feita e como, sem ter de se preocupar com a cotação da moeda e as ações diárias do governo. Não precisam tocar suas editoras refletindo se há estabilidade suficiente para encarar o caminho que pretendem seguir. Numa crise econômica como a de 2008, o mercado editorial internacional se retraiu, mas a base de confiança nos alicerces da economia e da sociedade não deixaram os editores tão à mercê dos tempos. É bem mais fácil trabalhar com uma mercadoria que se realiza no futuro em sociedades nas quais mirar o horizonte é sempre um exercício possível.

Pois o Brasil mudou, os governos estão quebrados e o slogan da “Pátria educadora” ainda não começou a ser posto em prática. Há um novo ministro, advindo da universidade e admirador do mundo da cultura, o que nos traz alguma esperança. Porém, num post anterior, chamei a atenção para a paralisação das compras governamentais na área de livros paradidáticos, para o fato que — tanto em função da insolvência nas contas governamentais como pela falta de vontade política — nossos governantes estavam tirando momentaneamente a literatura, infantil e adulta, do horizonte das bibliotecas públicas e escolares. O problema, eu escrevia, se dava em todas as áreas: federal, estadual e municipal. Agora está claro, a questão afeta o orçamento do país como um todo. Por isso é preciso dizer que a questão das bibliotecas escolares é apenas uma pequena ponta de um contexto maior — que afetará nossas vidas em muitos outros aspectos, tão importantes como o mercado livreiro. No entanto, como sou profissional desta área, minha contribuição é falar do meu setor, sem perder de vista o que acontece no país.

Bem, se a dificuldade já era real enquanto existia a ilusão de um Brasil estável, imaginem agora, quando voltamos a ter que nos perguntar em que país vivemos.

Em seus quase trinta anos, a Companhia das Letras conheceu sete ou oito moedas diferentes, planos econômicos dos mais diversos, retenção de 80% do nosso caixa de um dia para o outro, mas confesso que não esperava — apesar dos alertas dos economistas sobre a condução perigosa da economia, nos últimos quatro anos — voltar a viver sem estabilidade econômica ou com estagflação. Não esperava mais, quando no exterior, não poder me orgulhar do meu país, ao ter que explicar que aqueles governos recordistas mundiais em formação de bibliotecas e divulgação de livros para as classes desfavorecidas não existem mais.

Preparo-me para a feira de livros de Londres, que começa agora em abril. Para lá vou com a sensação de orgulho perdido. Terei constrangimento ao dizer que investir em grandes obras da literatura brasileira é cada vez mais difícil, que talvez em alguns anos não verei mais novas gerações lutando para seguir lendo — afinal, elas não serão introduzidas ao livro nas escolas públicas, como aconteceu com as gerações das últimas duas décadas. Terei que contar que as livrarias estão começando a sofrer os primeiros sinais de recessão e que a cotação do dólar não para de subir. O Brasil será um país maduro quando suas iniciativas democráticas e educacionais forem transformadas em políticas de Estado, podendo o país depender principalmente de seus cidadãos: trabalhadores, empresários ou profissionais liberais. Quando os governantes e a oposição que temos não puderem mais estragar o país. Quando as instituições e a democracia forem maiores que os homens e mulheres que comandam a política nacional. Ainda não chegamos a este ponto. É o que a nossa crise econômica e política tem a nos dizer.

No momento em que este post for publicado, o leitor já saberá que a Companhia das Letras adquiriu 55% da editora Objetiva, formando um grupo coeso, com a mesma participação acionária previamente existente. Teremos dezenove selos diferentes e talvez o mais significativo catálogo de autores brasileiros já conhecido. Terei acertado em investir pessoalmente, mais e mais, acreditando num Brasil que quer ler? Só o tempo dirá.

No meu livro de contos, Linguagem de sinais (2010), criei dois personagens que andavam sempre olhando para o chão. Reconheciam o mundo pelo calçamento. Não conseguiam caminhar e olhar para o horizonte ao mesmo tempo. A literatura é sempre premonitória. Ano que vem faço sessenta anos, e minha editora completará trinta. Pensei que não voltaria a viver a instabilidade social que hoje avizinho.

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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Ele contribui para o Blog da Companhia com uma coluna mensal chamada Imprima-se, sobre suas experiências como editor.

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