As cadeias
José Miguel Wisnik - O Globo
‘A execução fria e banalizada de um servente de pedreiro, por policiais, filmada por um vizinho, é tida pelo governador de São Paulo como exceção’
Nesta quinta-feira em que escrevo, o governador Geraldo Alckmin declara que a repercussão da onda de violência em São Paulo, no tiroteio diário do noticiário, tem aspectos de uma campanha injusta e alarmista contra a terceira maior metrópole do mundo. Embora tenham ocorrido os assassinatos de 90 policiais e 200 civis (numa contagem recente que não sei dizer exatamente quando começa nem, obviamente, quando termina), não existe segundo ele a propalada guerra entre polícia e crime organizado. Em vez disso, sempre segundo o que leio da fala do governador, temos índices de homicídios estatisticamente compatíveis com uma megalópole cuja concentração populacional é “maior do que a Argentina”.
Imagino que esse discurso oficial em banho-maria esteja ocupando o lugar da falta do que dizer diante dos fatos alarmantes, e que essa súbita defesa do orgulho ferido de São Paulo vale na verdade por uma atitude disfarçadamente defensiva. No bolo, ocorrências tremendas como a execução fria e banalizada de um servente de pedreiro, por policiais, filmada por um vizinho, são tidas pelo governador como exceções, embora evidentemente façam parte de uma massa de acontecimentos cuja trama é complexa. Não sabemos como os dispositivos de inteligência estaduais e federais estão analisando a situação, e que complicações maiores os fatos visíveis escondem. Não sou nenhum especialista na questão, e falo como o cidadão que se depara toda manhã com o saldo das noites sangrentas e incendiárias, em pontos múltiplos da cidade, do estado e em outros estados.
A minha impressão é de que há nessa violência um componente viral, por isso mesmo difícil de ser reduzido à lógica da guerra entre forças disputando territórios, como a que se vê, mesmo que com suas ambivalências próprias, na geografia social do Rio de Janeiro, que deu lugar às UPPs. Ao que se sabe, criminosos nas prisões em São Paulo, como quem não tem nada a perder, ordenam ataques em rede a policiais, que podem acontecer em qualquer lugar e a qualquer momento, buscando minar as bases de sustentação física e psicológica da lei. Querem alguma coisa particular ou a instauração genérica de um estado de decomposição legal? Não sei, e imagino que deva haver um mundo de situações específicas e de casos concretos.
Mas parece evidente também que, junto com a natureza escapadiça e desterritorializada do conflito, algo desencadeia e atiça uma cascata de violências oportunísticas e aleatórias que envolvem criminosos contra policiais e civis, policiais contra inocentes e criminosos, sem contar nem descontar criminosos contra criminosos e policiais contra policiais. O vírus das violências sociais latentes, sem lugar específico, por isso mesmo se alastrando para outras cidades, instaura, como um elemento indiferenciador, uma possibilidade perturbadora: a de que as ambivalências brasileiras produzam uma reação em cadeia do que há nelas de mais dissolvente, entrópico e crônico. Como conter isso, é a pergunta que não se vê ninguém responder.
É difícil para o estado assumir a existência desse estado de coisas que solapa surdamente os seus fundamentos públicos. Alckmin parece querer compensar o atraso de ações nítidas e efetivas com uma pálida saída retórica. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, optou, no entanto, por dizer uma verdade que não se ouviria normalmente num discurso chapa-branca: preferiria morrer a apodrecer numa cadeia brasileira, apontando para uma parte gangrenada do sistema penal brasileiro. Acho que dizer alguma verdade, e ainda mais uma verdade crucial como essa, já é um passo importantíssimo para o entendimento das coisas.
Num jornal televisivo vejo um especialista do Ipea falar sobre o impacto devastador da violência sobre a economia brasileira, estimável em algo como 5%, ou mais, do PIB. Além dos gastos prisionais, em segurança, em segurança particular, em saúde etc., o capital humano representado pelos jovens que formam o grande contingente de atingidos pela violência, nos quais sociedade e famílias investiram, é perdido, segundo ele, na hora de entrar para o mercado de trabalho e para a cadeia produtiva, com suas mortes.
Não deixo de ficar desconcertado com a mensuração tecnocrática da tragédia social pela régua da acumulação econômica. Será esse então, me pergunto, o único critério que nos restou — o funcionamento e o não-funcionamento da cadeia produtiva — para tentar entender o inchaço e o descalabro das cadeias? Mas não deixa de ser nesse trocadilho e nessa inversão sinistra, em que as cadeias carcerárias ameaçam por em perigo a cadeia produtiva como um todo, que está o sintoma e o xis da questão.
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