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sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O teatro está de luto: morre Alcione Araújo


Morre o autor e diretor teatral Alcione Araújo
O globo


Escritor teve parada cardíaca durante visita a Belo Horizonte


Alcione Araújo
Foto: Arquivo


RIO — O dramaturgo, diretor teatral, roteirista e escritor Alcione Araujo - fino intérprete dos costumes e autor politicamente engajado - morreu nesta madrugada em Belo Horizonte aos 67 anos. Estava hospedado, com a namorada e os sogros, em um hotel na Savassi, bairro boêmio da capital mineira, quando sofreu um infarto. Seu coração não suportou o choque e morreu antes da chegada do atendimento médico.
Alcione Araújo havia estado em Ouro Preto na final de semana e chegara a Belo Horizonte na segunda-feira. Mineiro de Januária, cidade do norte de Minas a 585 km da capital, o dramaturgo morava desde 1978 no Rio, para onde seu corpo foi trasladado. O velório está em andamento nesta sexta-feira, no Memorial do Carmo, no Caju, das 11h às 17h. Em seguida, será cremado.
Só depois de formado em engenharia, com título de mestrado em filosofia e já professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Alcione decidiu ingressar num curso de formação de atores. Aos 29 anos teve sua sua primeira peça encenada, “Há Vagas para Moças de Fino Trato”, sob a direção de Aderbal Freire-Filho. O texto, uma narrativa psicológica dos traumas amorosos de três mulheres, deu-lhe projeção nacional, quando montado em São Paulo, dirigido por Amir Haddad, com Glória Menezes, Yoná Magalhães e Renata Sorrah.
— Tem pessoas que têm um lugar tão forte no mundo que, quando desaparecem, deixam uma sensação esquisita — disse Amir Haddad — Eu dirigi "Há vagas para moças de fino trato", que é a Glória Menezes produziu. Era trabalhar um texto de um poeta mineiro, falando de problemas de mulheres. Quando ele foi ver o ensaio-geral, o único que viu, ele teve uma reação surpreendente: "Rapaz, estou envergonhado, pois você me deixou a nu. Eu vi agora o quanto eu me coloquei nessa peça". Eu gostei de ter conseguido esse resultado. Ele partcipou da vida criativa intensamente.
Seu primeiro grande sucesso de bilheteria foi “Doce deleite”, de 1981. Foi responsável pela direção e pelo texto de oito dos 12 esquetes cômicos. Encenada por Marília Pêra e Marco Nanini, “Doce deleite” percorreu várias cidades brasileiras em turnê de dois anos de duração.
Marília Pêra estava pronta para entrar em cena na peça "Alô, Dolly" quando recebeu a notícia. Disse que ia dedicar a sessão a ele:
— Eu e o Nanini éramos muito amigos e nos reuníamos para sonhar. Passávamos noites e noites falando: "E se fizéssemos isso? E se fizéssemos aquilo?" Tínhamos ideias, mas não conseguíamos concretizar nossos sonhos. O Alcione entrou e concretizou nossos sonhos com a peça "Doce deleite". E veio com uma direção muito delicada, em cima do ator, que era o grande interesse dele. Dirigia com muito afeto. Era um homem de teatro, cultíssimo, inteligentíssimo.
Em 1999, a obra teatral completa de Alcione Araújo foi editada em três volumes. Na apresentação, o ator, dramaturgo, cineasta e roteirista Domingos Oliveira definiu-o como um autor de “disposição trágica” e “dramaturgia audaciosa”. Domingos disse que perdeu um grande amigo:
- Perdi um grande amigo. Um amigo íntimo, desses que temos pouco durante essa vida frágil. Era uma das maiores inteligências do Brasil. Escritor excelente, homem de teatro. A morte não poupa ninguém, não tem critérios. Só me resta o lugar-comum: Brasil perdeu um de seus grandes pensadores.
Na década de 80, o autor mineiro começou a diversificar sua produção, dedicando-se também ao cinema e à televisão. Escreveu 14 roteiros cinematográficos de longa-metragem, entre os quais, “Nunca fomos tão felizes” (prêmio de melhor roteiro nos festivais de Gramado e Brasília), “Jorge um brasileiro” e “Policarpo Quaresma”.
— Fizemos três filmes juntos — conta o cineasta Paulo Thiago — Trabalhamos no roteiro de "Jorge, um brasileiro" e "Policarpo Quaresma" e eu filmei uma peça dele, no filme "Vagas para moças de fino trato". Foi uma grande parceria, pois ele conhecia dramaturgia profundamente. Era um otimista em relação ao mundo, por acreditar na dimensão construtiva da arte. E cultivava o humor.
Pedro Bial, que trabalhou com ele no roteiro de seu longa de ficção, "Outras estórias", lamentou:
- O trabalho de adaptar Guimarães Rosa para o cinema não seria possível sem o apoio do Alcione. Ele tinha a base teória e prática de quem sabia ler na inteireza uma obra como a do Gumarães. E como era comprometido com a arte do drama e cultivava as ferramentas do audiovisual, ele me deu segurança para o trabalho. Companhia agradável, ele dialogava bem com as linguagens mais contemporâneas, com a generosidade de se expressar sem impor.
O diretor Murilo Salles foi outro que lembrou sua parceria no cinema:
- Foi meu parceiraço no meu primeiro filme, "Nunca fomos tão felizes". Alcione era um sedutor, muito preparado e inteligente. Instantaneamente, nós viramos melhores amigos.
Como escritor, Alcione publicou os romances “Ventania” (2011)”, “Pássaros de voo curto” (2008) e “Nem mesmo todo o oceano” (1998) e as reuniões de crônicas “Cala a boca e me beija” (2010) e “Urgente é a vida” (2005).
“Ventania” se passa em uma cidade esquecida depois que uma mina de ouro foi fechada, “onde se pode ouvir o som do vento que levanta a poeira e carrega as folhas secas”.
“Nem mesmo todo o oceano” narra o percurso de um arrivista durante a ditadura militar brasileira. Ameaçado de morte, um médico que acobertava torturas nos porões da repressão prepara-se para explicar seus atos, procurando entender como o ambicioso e esforçado rapaz do interior havia se tornado um colaborador de militares desumanos. “Pássaros de voo curto” entrecruza personagens como uma cantora lírica e um engenheiro britânico de minas de ouro e um aviador que combate os alemães na Itália.
Alcione Araújo apoiou a candidatura presidencial de Lula em 2002 e 2006 e de Dilma Rousseff em 2010. Foi um artista de militância política e discurso engajado. “A maior parte da população sempre esteve do lado excluído da sociedade, afastada pelo apartheid econômico, social e cultural, da mesma forma que os negros assistiam às missas confinados numa área cercada da igreja. O que poderia mudar esse quadro seriam políticas públicas menos perversas que permitissem escolarizar e formar cidadãos e profissionais, além de uma distribuição de renda menos perversa. Se esse avanço não se efetivar, o país terá duas culturas conflitantes numa mesma geografia, se já não as tem. E os enfrentamentos, via violência urbana, vão se ampliar”, dizia ele, quando analisava o quadro político e cultural do país.
Em uma entrevista, quando questionado sobre por que escrevia, Alcione respondeu: “Entendo o que Mallarmé queria dizer quando afirmou que a vida foi feita para ser transformada em livro, assim como entendo a perplexidade de Aldous Huxley ao perguntar como alguém pode viver sem escrever. Vivo impregnado de teatro, bêbado de literatura, encharcado de cinema, grávido de filosofia e gratificado por exercer o que, para mim, é a melhor profissão do mundo: a que permite ganhar a vida com prazer e oferecer ao leitor/espectador vivências do que ele não viveu”, disse ele. “A arte de escrever é pessoal ou não é nada. Acho que é preciso trabalhar, trabalhar e trabalhar. Quando achar que está pronto, recomece a trabalhar. Como disse Drummond, se, ao final, não tiver o frescor inaugural de que acabou de ser escrito, todo o empenho terá sido em vão. Acho que escrevo porque não encontrei nada mais interessante para dedicar a vida.”



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