Zuenir Ventura: "A memória e a ficção são inseparáveis"
MAURÍCIO MEIRELES - Revista Época

O escritor e jornalista afirma que já não sabe o que são histórias reais ou inventadas em seu primeiro romance, "Sagrada Família", lançado neste ano

Zuenir Ventura, com 81 anos, não pensa na morte. Flagra-se fazendo planos com Alice, sua neta, para daqui a 20 anos – e só então lembra que talvez não esteja vivo daqui a tanto tempo. O criador da expressão "cidade partida" – usada até hoje para definir o Rio de Janeiro – não para de produzir. Famoso por seus dois livros sobre 1968, ele quer escapar do rótulo de “advogado” daquele ano . “Me livra disso, por favor...”, diz, rindo. Autor de grandes reportagens, este ano Zuenir fez sua estreia como romancista, com o livro Sagrada Família (Objetiva, 232 páginas, R$ 36,90), em que mistura memórias próprias com memórias emprestadas – além de ficção pura e simples. Foi a obra mais vendida na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho.
O livro, de leitura agradável e rápida, retrata as relações difíceis de uma família do interior. O narrador é o menino Manuéu, aprendiz de pintor de paredes, inspirado no próprio autor. “É um livro cheio de espanto, sobre a perda da inocência”, afirma Zuenir. Aproveitando o tema do romance – a memória –, o autor me recebeu em sua casa para falar da família e do passado. Na entrevista, Zuenir conta causos sobre figuras reclusas, como seu amigo Rubem Fonseca, ou momentos difíceis, como a morte do seu amigo Vladimir Herzog durante a ditadura, em uma cela do Departamento de Ordem Política e Social, o temido Dops. Tudo sem perder o tom manso e o bom humor. O resultado dessa conversa você confere abaixo:
ÉPOCA – De onde surgiu a ideia de um romance sobre relações familiares?
Zuenir Ventura – O tema família me persegue há muitos anos. Fui criado numa família tradicional, de classe média baixa. Meu pai era pintor de parede e essa também foi minha primeira profissão. Há dez anos eu recolho memórias das pessoas. Mas o livro é realmente ficção, porque as memórias que uso não são só minhas, mas também inventadas ou mesmo emprestadas. No final, não dá para saber exatamente o que é realidade e ficção. Os personagens principais eram reais, em um primeiro momento, mas eles ganharam voo próprio e viraram uma fabulação. Outro dia meu editor me perguntou, sobre um episódio muito marcante da história: “Isso é verdade, Zuenir?” E eu respondi: “Não sei”. Ele pediu que eu não escondesse o jogo, mas realmente já não sei mais o que é verdade ou não. Por isso usei Manoel de Barros na epígrafe: “Só 10% é mentira, o resto é invenção”. A memória não é objetiva. O Pedro Nava, nosso grande memorialista, dizia assim: “Em matéria de memória, você não sabe onde acaba a lembrança e começa a imaginação”. As duas são inseparáveis, a verdade e a ficção.
ÉPOCA – Mas o que da sua família está na história?
Ventura – É claro que tem coisas da minha família ali. Mas também tem a dos outros: histórias que ouvi ou observei. É um retrato de uma família patriarcal, em que o homem é o provedor – às vezes o tirano. Naquela época havia muito pudor, recato e hipocrisia. Você podia fazer, mas ninguém poderia ver. Fazia-se tudo o que se faz hoje, mas escondido. Quis falar desse período da II Guerra Mundial e as duas grandes ditaduras brasileiras – a civil, de Vargas, e a militar. Eu sofri um pouco com as duas. Acho que é um livro em que há uma perda da inocência. Aquele garoto, de nove anos, o narrador, se surpreendendo com as revelações e descobertas. É um livro cheio de espanto.
ÉPOCA – As relações familiares que o senhor retrata são atávicas, em que sentimentos ruins como o rancor e a inveja convivem com o amor. O senhor também tem essa experiência familiar?
Ventura – O Nelson Rodrigues, que retratou a família em um ambiente urbano, dizia o seguinte: “Não há família sem adúltera”. A família daquela época tinha todas essas coisas. Havia pedofilia, incesto, infidelidade. O adultério era um pecado mais feminino, porque o homem podia trair. Algumas histórias e casos daquele existiram na minha família, como havia em todas: a mulher que ficava sem casar ou que aos 30 anos era considerada balzaquiana, por exemplo. Os tabus recaíam sobre as mulheres.
ÉPOCA – Há quem encare o senhor como o grande “advogado” de 1968...
Ventura – Me livra disso, por favor... (risos)
ÉPOCA – Em 1968 ou depois, o senhor precisou lidar com essa herança familiar repressora?
Ventura – Foi um grande problema. Sofremos muito. Sobretudo sexualmente. Eu percebo que o livro mesmo fala muito de sexo. E vejo que, naquela época, era o sexo mesmo que comandava tudo – mas o sexo reprimido, calado. Nós falávamos mais de sexo do que fazíamos de fato. É aquela coisa: falamos muito mais de liberdade durante uma ditadura. A minha geração toda só se libertou em 1968. Depois que acabei o livro, conversando com meus editores, percebi que peguei dois momentos da nossa história: a repressão comportamental e depois a liberação.
ÉPOCA – O senhor já falou que, mesmo em 1968, o senhor – e toda a esquerda – era “prafrentex mas muito moralista”. A esquerda era moralista?
Ventura – Muito moralista. O que é engraçado, porque ela arriscava até a vida pela liberdade política. Mas, no comportamento, era muito reacionária. Há histórias dos guetos da esquerda em que a mulher não tinha a menor liberdade. A mulher que “dava” era estigmatizada. Eles falavam em casamento aberto da boca para fora, mas esperavam o casamento tradicional.
ÉPOCA – O senhor nasceu em uma família pobre, mas seguiu uma carreira mais intelectual. Como conseguiu superar as falhas na formação?
Ventura – Isso é engraçado, porque minha família era pobre, mas não miserável. Nunca tive dificuldades de alimentação ou algo do tipo. Mas precisei começar a trabalhar com 11 anos, como pintor de parede, da mesma forma que o narrador do livro. Fui também contínuo de um laboratório de próteses dentárias em Barra do Piraí, depois fui professor primário. Para estudar de graça, o colégio me ofereceu a chance de dar aulas. Eu adorava ensinar e queria seguir carreira de professor. Mas era preciso vir para o Rio de Janeiro. Eu vim para cursar Letras na UFRJ. Era uma coisa curiosa, porque vinha de uma família iletrada, mas eu adorava ler. Isso e jogar basquete (risos).
ÉPOCA – O que o senhor lia?
Ventura – Era uma formação muito desorganizada. Nova Friburgo não tinha muita oferta. Mas li Judas, o obscuro, que me marcou muito. Eu li esse negócio adolescente, não sei como isso foi cair na minha mão. Logo depois, veio Moby Dick. Era “pauleira”, mas eu lia o que pintava. Depois apareceu em Friburgo uma professora que conhecia muito literatura. Foi ela que me apresentou Machado de Assis e, depois, o primeiro Proust. Mas era uma leitura muito desorganizada.
ÉPOCA – É verdade que sua mãe queria que o senhor fosse padre?
Ventura – É. Só que eu descobri que a vocação era dela e não minha.
ÉPOCA – O senhor foi aluno de Manuel Bandeira. Como foi essa experiência?
Ventura – Ele já era, naquela época, um dos maiores poetas da língua portuguesa. Uma figura incrível. Era muito acessível. Com ele, aprendi algo muito importante: a ligação dele com a vida. Era uma época em que o intelectual adorava a torre de marfim, o isolamento. O Manuel não. Ele adorava a Lapa, tinha amigos sambistas. Cantou a Lapa em alguns dos seus poemas mais bonitos. Para mim, aquilo era absolutamente fascinante, aquela poesia suja, cheia de vida. Foi muito marcante. E olha que ele não era o melhor professor. O Bandeira tinha um problema de dicção decorrente da tuberculose, no tempo em que a doença deixava sequelas. Era um pigarro permanente. Ele tossia muito. A voz era meio ruim, não era nada empolgante como outros professores. Mas tinha a aura de ter aula com um dos maiores poetas da nossa língua. Um dia estávamos conversando na porta da faculdade. Ele, que morava em frente, num apartamentinho, nos convidou para visitá-lo. Lemos os livros, foi incrível. Guardo esse momento até hoje.
ÉPOCA – Chefiando uma equipe de repórteres, o senhor escolheu não publicar a história sobre o suicídio do seu amigo Pedro Nava, que se matou depois de ser chantageado por um garoto de programa. Foi o moralismo que pesou?
Ventura – Começamos a correr atrás da história. A apuração nos fez suspeitar que a motivação do Pedro era a chantagem desse garoto. Entrevistamos o rapaz, que tinha um problema grave de caráter. A história vazou para amigos do Pedro, que começaram uma pressão muito grande para não publicarmos. Pensavam que a imagem dele ficaria manchada por uma relação homossexual. Falavam na mulher dele. Acabamos concordando em não publicar. Hoje, vejo que houve um pouco de moralismo – especialmente da minha parte. Eu imaginava que revelar o homossexualismo pesava contra ele. Eu cedi a essa visão. Vinte anos depois, acho que publicaríamos tranquilamente em vez de fugir do tempo. Ele não ficaria estigmatizado.
ÉPOCA – Antes de ser morto, Vladimir Herzog assumiu um cargo na TV Cultura que podia ter sido seu. Como foi lidar com essa morte?
Ventura – Era uma época de medo e paranoia. Se você viesse me entrevistar naquele momento, eu imediatamente pensaria na possibilidade de você ser do SNI (Serviço Nacional de Informação). Uma das denúncias contra mim foi feita por um aluno, para você ter ideia. Era um fantasma. Me lembro ainda da morte do Vlado. Eu estava sábado em casa, em um almoço com vários amigos. A Clarice, esposa dele, me ligou e disse: “Zuenir, o Vlado foi assassinado”. Eu respondi: “Não brinca!” Hoje acho essa resposta meio idiota, mas foi um espanto. Ele era editor da revista que eu trabalhava e eu era o chefe da redação do Rio. Tínhamos uma ligação afetiva enorme. Eu realmente poderia estar no lugar dele. Quando ele morreu, ele era chefe de jornalismo da TV Cultura. E eu havia sido sondado para aquela vaga, mas desisti quando soube que ele também havia sido chamado – o contratante havia feito um jogo duplo. O Juca de Oliveira, sempre que me encontrava, brincava: “Era você que devia ter morrido”.
ÉPOCA – Com 81 anos, o senhor pensa na morte?
Ventura – Não penso, ela não me preocupa. Como você sabe, eu tive um câncer na bexiga há mais de dez anos. Naquele momento, a perspectiva da morte bateu. Havia um estigma do câncer, como se fosse uma sentença de morte. Eu já estou recuperado (bate na madeira). Como eu superei, esqueci. É uma questão que não existe mais para mim. Me surpreendo, várias vezes, fazendo planos para daqui a 20 anos. De repente, me toco: “Daqui a 20 anos eu vou estar com 101!” (risos) Tenho uma netinha, a Alice, que é minha paixão. Imagino-a com 20 anos e esqueço que vou estar com 101. Não sei se vou chegar lá. Meu pai morreu com 98. Este assunto me lembra muito o Luis Fernando Veríssimo. Uma vez perguntaram a ele: “Veríssimo, o que você acha da morte?” Ele respondeu: “Eu sou contra”. Eu também sou contra.
ÉPOCA – O senhor é uma das únicas pessoas que poderiam escrever uma biografia de Rubem Fonseca. Isso não está nos seus planos?
Ventura – Somos grandes amigos, ele é um dos meus ídolos. Mas uma vez tivemos um problema, ele ficou sem falar comigo algum tempo. Foi quando eu tentei escrever um perfil dele. Quando ele soube que eu estava ouvindo pessoas, ele teve um ataque – e rompeu comigo (risos). Não penso nessa biografia, porque quero manter a amizade. Sei que ele não ia permitir. Mas seria um livro ótimo. Ao contrário da imagem que muita gente tem dele – de um chato –, é um sujeito muito interessante. O Zé Rubem é divertidíssimo, engraçado. Você morre de rir com ele. Daria uma biografia surpreendente, porque é um personagem que nem seus leitores conhecem. Uma vez, nós fomos a Cuba para fazer parte de um júri literário. Fora do Brasil, o Zé Rubem é outra coisa. Assisti a uma palestra dele lá e ele deu um show. Eu não acreditava naquilo. Ele leu dois contos, um super obsceno e outro muito violento – e ele ria daquilo. “Zé Rubem, não é possível. Isso é dupla personalidade?”, eu disse. Ele respondia: “Não sei”. A fotógrafa me perguntou se era verdade que o Rubem não se deixava fotografar no Brasil. Eu disse: “Minha filha, você pode ganhar muito dinheiro vendendo essas fotos para o Brasil!” Depois, Fidel Castro resolveu dar uma entrevista de quatro horas para nós. Aí o assessor dele pegou a gravação e avisou: “Só pode sair quando ele morrer”. Eu acho que ele não vai morrer nunca! (risos) Pior foi a cara de pau do Zé Rubem, que perguntou: “Comandante, é verdade que o senhor tem muitos filhos fora do casamento?” O Fidel ficou irritadíssimo. “Mas são todos reconhecidos!”, ele gritava.
ÉPOCA – Rubem Fonseca costuma dar dicas para amigos que se arriscam na ficção. O senhor teve essa consultoria?
Ventura – Não dessa vez. Quando escrevi Inveja, sim. Mas ele é muito rigoroso: quer tirar, cortar, substituir. Naquela época, muita coisa eu não obedeci! (risos) Dessa vez, eu não quis. (risos)
ÉPOCA – O seu nome é diferente. Já confundiram com nome de mulher?
Ventura – Acontece sempre (risos). Ligam aqui em casa e perguntam: “Queria falar com a dona Zuenir, por favor?” Eu respondo: “É ela mesmo, pode falar”, Já tenho um número pronto. Em exame médico é assim também. Estou ali sentado e anunciam: “Dona Zuenir!” Eu levanto. Mas também acontecem outras confusões. Na primeira Flip foi uma cena incrível. Eu mal cheguei e fui logo cercado por uma dezena de pessoas, várias mulheres, elogiando meus livros, dizendo que me adoravam, me achavam incrível. Daqui a pouco uma grita para a amiga: “Fulana! Vem cá ver o Saramago!” (risos) Eu já estava me achando.
ÉPOCA – Como é a sua rotina?
Ventura – Ando todo dia, porque a endorfina me inspira. À noite eu vejo Avenida Brasil (risos). No meu tempo, ver televisão era vergonhoso. Nós víamos a novela da Janete Clair, mas escondíamos – porque dava vergonha (risos). Tinha que mentir, dizer que estava passando pela cozinha e viu sem querer. Mas adoro a Adriana Esteves, o Marcos Caruso e os outros. Acho que se mente mais na política brasileira do que na novela.
ÉPOCA – Como você, um homem de esquerda, foi ficar amigo de Nelson Rodrigues, considerado à época um grande reacionário?
Ventura – Alguns meses, eu fiquei preso com o psicanalista Hélio Pellegrino, que era muito amigo do Nelson. O Hélio tinha uma participação na vida política da época. Foi orador na Passeata dos Cem Mil. Mas o Nelson, sempre exagerado, fez esse papel parecer maior ainda. Ele dizia que “o verbo do Helio movia montanhas”. Conclusão: o Helio foi preso por culpa do Nelson. Muito culpado, ele ia visitar o amigo todo dia – até no Carnaval. Nas primeiras vezes, eu virava as costas literalmente para ele: “Não quero falar com esse cara”, eu dizia. O Nelson apoiava o golpe abertamente, tinha amigos generais. Depois de algum tempo, o Helio disse que era ridículo eu ficar de costas para o Nelson estando na mesma cela. Quando ele conseguiu tirar o amigo da prisão, o Helio disse: “Eu só saio com o Zuenir.” O Nelson respondeu: “O Zuenir, essa doce figura, será que ele não vai colocar uma bomba aí no quartel, Helio?” (risos) Olha a cabeça dele com era. Acabei saindo e ficamos muito amigos. Só que ele era irritantemente reacionário, fazia piada das passeatas – mas era genial.
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