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quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

"Só há dois tipos de música: a bonita e a feia"


“Só há dois tipos de música: a bonita e a feia”, diz Andrea Bocelli
O tenor italiano diz que se sente em casa no Brasil e que ópera é para todo mundo

Luís Antonio Giron - Revista Época

Andrea Bocelli (Foto: John Sciulli/Getty Images)
O tenor italiano Andrea Bocelli. (Foto: John Sciulli/Getty Images)




O italiano Andrea Bocelli, de 54 anos, é hoje o tenor mais popular do mundo. Cego de nascença, criado na zona rural próxima de Pisa, dono de uma voz poderosa e um timbre cintilante, ele conquistou todos os prêmios e todos os tipos de público, do erudito ao popular. Participou de dezenas de produções operísticas e gravou CDs importantes. Virou ídolo popular quando mesclou ópera e música pop. Bocelli se apresenta na quinta-feira, dia 13, às 21h, no Jockey Clube de São Paulo (avenida Lineu de Paula Machado). O espetáculo tem um superprodução de show de rock: conta com um palco de 54 metros de extensão e 400 metros quadrados, vinte tendas, seis telões de led. Um detalhe: todo mundo vai poder ver o concerto sentado em 22 mil cadeiras. Bocelli é acompanhado por uma orquestra e um coral regidos pelo maestro Eugene Kohn. Entre as participações especiais, o quarteto vocal DIV4s e cantora Sandy. Em entrevista a Época, Bocelli analisa sua carreira e conta como fez para conquistar seu público. Para ele, não há diferença entre música clássica e popular; apenas entre música bonita e feia.

ÉPOCA - Como o senhor combina ópera e canto popular?

Andrea Bocelli - Foi como cantor popular que eu conquistei uma certa notoriedade. Mas, de fato, nasci como cantor de ópera: meu percurso de estudo é de tenor. Desde menino eu era um assíduo frequentador e conhecedor do repertório lírico, e conseguia distnguir as vozes de meus ídolos e consumia os discos deles: Enrico Caruso, Beniamino Gigli, Mario Del Monaco, Aureliano Pertile, Tito Schipa. E sobretudo Franco Corelli, com o qual escolhi meu próprio destino desde a primeira audição, desde o dia em que recebi como presente a sua interpretação do improviso da ópera Andrea Chénier. A ópera, como gosto de definir, é “o paraíso da música”. E continua a ser o meu primeiro grande amor. Quando eu era garoto, autodidata, cantava livremente as músicas que eu mais amava de Puccini, Verdi, Mascagni, Giordano, sem esquecer os romances populares do século XIX que grandes tenores possuíam no repertório (de “O sole mio” a páginas de Tosti, Denza, Bixio...). Mais tarde, o estudo se tornou mais sistemático e sério. Foi quando me aproximei de um maestro, Luciano Bettarini. Ele havia ensinado presonagens do calibre de Fedora Barbieri, Ettore Bastianini, Ferruccio Tagliavini. Graças a Bettarini, aprendi o rigor do canto. Uma disciplina que, adolescente, não imaginava ser tão severa, parecida com aquela que um atleta deve seguir, para obter resultados. Anos depois, tive a imensa honra de aperfeiçoar-me com o próprio Franco Corelli, o tenor de que sempre mais gostei. Todos os gêneros possuem sua própria complexidade e peculiaridade: não renego o pop, de jeito nenhum. Faço as duas coisas há mais de 20 anos, com a maior honestidade e qualidade possíveis. Mais que distinguir pop e clássico, prefiro diferenciar música bela de feia. Só há dois gêneros de música: a bonita e a feia. Mesmo sem esconder a minha predileção pela ópera lírica. Meu dia-a-dia tem a ver com ela desde sempre.

ÉPOCA - Os tenores sempre foram os heróis da ópera. Você tem vocação para herói? Ou faria papéis de vilão ou bufo?

Bocelli - É verdade. O registro vocal já seleciona e indica uma tipologia de personagens da voz de tenor. O tenor é mais facilmente reconhecível pelo público como sendo a do jovem galã. O papel de protagonista daquele que ama e luta por seu amor. Portanto, traz impulsos passionais e heroicos. Enquanto isso, a voz de barítono - cujo timbre evoca uma idade mais madura - é apropriado ao papel do antagonista, daquele que, malévolo, tenta contrastar os sentimentos do tenor. O meu instrumento vocal tem uma versatilidade que propicia a abordagem tanto do bel canto como do estilo spinto [entre o lírico e o dramático], e até do verismo do do fim do século XIX. Para aprofundar em um personagem, ainda mais quando devo representá-lo no palco, é necessário um processo de identificação para acrescentar intensidade e credibilidade. Não escondo que me sinto mais feliz de vestir os trajes e exprimir os sentimentos positivos de certos personagens, os heróis ou os generosos. Hà poucos meses, eu interpretei no palco e depois gravei o papel de Romeu, de Roméo et Juliette de Charles Gounod, uma ópera de uma beleza vertiginosa, que transmite uma mensagem universal: o ódio conduz sempre ao mal, o amor representa a única estrada a percorrer. E foi uma alegria poder interpretar o papel de Romeu, corajoso, apaixonado, simples e romântico.

ÉPOCA - O mundo da música clássica tem sofrido transformações, tanto no mercado como no modo de interpretar. Como você analisa o fenômeno?

Bocelli - A biblioteca musical inteira de quando eu era criança caberia em um pen drive... O mundo se altera em alta velocidade, as tecnologias influenciam o modo de se relaciona, de comunicar, de fornecer e consumir bens e serviços. O progresso traz consigo facilidades e riscos, como sempre. A cultura se tornou mais acessível. A música, inclusive a clássica, ficou tornou-se mais fácil de acessar antes do advento do mundo digital, por meio de instrumentos que a internet tornou obsoletos. Assistimos a uma revolução, mesmo em relação ao gosto das pessoas. Por exemplo, as liberdades que os intérpretes líricos tomavam há um século agora não seriam apreciadas. Em termos de tendências, o mundo da música clássica me parece hoje menos elitista, e este é um dado positivo. Dito isso, gosto de recordar Giuseppe Verdi, autor de um aforismo que já tem um século e meio mas ainda é atual: “Voltar ao antigo será um progresso”. Na música e não apenas na música, a inovação só acontece quando se considera, com humildade, as aquisições passadas.

ÉPOCA - O que representa para você gravar. Antigamente, discos eram prioridades na vida de um músico. Hoje, são secundários. Você grava pensando no disco como material promocional, ou uma obra conceitual em si mesma?

Bocelli - Sempre tive uma enorme paixão pela tecnologia aplicada à produção sonora. Quando jovem, eu conhecia os estúdios de gravação caseiros. Com o passar dos anos, houve uma evolução vertiginosa, tanto no pop como no clássico. Hoje em dia os instrumentos tecnológicos (os programas de computador, os efeitos digitais, a tipologia de reverberação e outras tantas) são quase as mesmas. É um padrão que eu considero positivo, pois faz justiça à criatividade. O melhor resultado de gravação não depende da tecnologia mais sofisticada, e sim daquele que tem as ideias mais brilhantes. A gravação de um CD continua sendo ainda um valor importante, é um modo de marcar o meu percurso artístico, de aprofundar um determinado repertório em um estúdio, da forma mais rigorosa possível. Além disso, o CD é um modo de entrar na casa das pessoas. É uma honra poder fazer parte da existência de muitas pessoas, levando a elas um momento de serenidade. Prefiro as gravações ao vivo às d estúdio, já que produzem um resultado final genuíno, talvez menos perfeito, mas sem artificialismos.

ÉPOCA - Você trabalhou com vários maestros. Quais foram os que mais o impressionaram? E os que o decepcionaram? Por quê?

Bocelli - Nenhum maestro me decepcionou a ponto de me lamentar publicamente sobre o que fizeram. Tive a sorte de trabalhar com maestros extraordináros, do calibre de Zubin Metha, Seiji Ozawa, Valery Gergiev, Myun-Whun Chung, Lorin Maazel, Alan Gilbert, Fabio Luisi...Com todos eles tentei aprender algo, e sou grato a cada um deles pela bagagem artística que pude adquirir graças a esses encontros. Gostaria também de lembrar maestros de grande valor e experiência como Marcello Rota, Eugene Kohn (que me acompanha no espetáculo de São Paulo) e Carlo Bernini, artitas com os quais dividi aventuras memoráveis, em uma sintonia impressionante.

ÉPOCA - Como você monta o repertório de seus recitais e concertos? Qual o seu critério de escolha de músicas?

Bocelli – Proponho ao público que a gente compartilhe páginas imortais, árias ou duetos, a partir do repertório típico do tenor italiano. Além da sequência característica, tento equilibrar obras-primas líricas e romances populares que podem ser chamados de “clássicos”. Não deixo de guardar uma surpresa, sem esquecer os pedidos e os bis tradicionais. Persigo a interpretação convincente e a emoção. Busco cantar de uma forma apaixonada.

ÉPOCA - A música erudita parece cada vez mais distante da popular. Qual o seu papel nesse processo?

Bocelli - Quem não conhece a fundo o assunto pode ter medo ou alimentar alguma suspeita. Mas basta propor uma página lírica qualquer - tomando o cuidado de explicar o contexto histórico e o enredo da ópera - para que as grandes plateias compreendam tudo. É preciso também explicar que o melodrama, a ópera, não é uma arte “para poucos”, e sim um espetáculo para todos, acessível ao jogo visceral, à intensidade das paixões, sem qualquer barreira cultural. Toda vez que faço isso em um ambiente pop me sinto satisfeito. Fiz um trabalho de divulgação.

ÉPOCA - Você já veio ao Brasil Que impressões você guarda do país e do público?

Bocelli - O Brasil é uma terra em que tudo é espantoso, da beleza natural à vastidão da paisaem. É uma grande nação onde é fácil se sentir em casa. Os brasileiros são generosos, vivazes, apaixonados e me deram demonstrações de afeto inesquecíveis. O público brasileiro participa do espetáculo, e isso faz a diferença no resultado da interpretação. Por isso me sinto tão feliz em cantar para os brasileiros.

ÉPOCA - A Europa vive uma crise econômica. Você sente isso no seu trabalho também?

Bocelli - Isso não acontece no que diz respeito a minha atividade de concertos, récitas e gravações. Mas naturalmente percebo isso acontecer de forma dramática na vida diária. Não só a crise na Europa, mas não só ela. E a crise vai além do que assistimos pela televisão. Como diz uma conhecida ária de ópera [Ainda, de Verdi]: “Oggi noi siam percorsi dal fato. Ma doman voi potria Il fato colpir” (Hoje somos vítimas do destino. Mas amanhã vocês poderão se apoderar do destino”) Nosso dever é ajudar a melhorar a situação. Alguns são mais afortunados do que a maioria. Tento fazer isso nos limites de minha possibilidade com a Fundação Andrea Bocelli, que investe na pesquisa científica e colabora com comunidades carentes, em especial dos países em desenvolvimento. 


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