O museu que vende ‘warhols’ para comprar obras de mulheres e negros
Álex Vicente - El País

Uma pinacoteca de Baltimore se desfaz de vários quadros do seu acervo para financiar a aquisição de peças de grupos sociais pouco representados, e assim corrigir o cânone da arte

Fragmento de ‘Planes, Rockets, and the Spaces
in Between’ (2018), de Amy Sherald.
BALTIMORE MUSEUM OF ART
Há museus que alardeiam a vontade de abrir suas salas, num futuro hipotético e necessariamente distante, a mais mulheres e artistas de minorias étnicas. E existem aqueles que realmente colocam esse objetivo em prática. O Museu de Arte de Baltimore (BMA) se encaixa, sem dúvida, no segundo grupo. A pinacoteca norte-americana, soberana instituição fundada em 1914 nesta cidade da Costa Leste, causou espanto e dominou as manchetes com a venda de sete obras de sua coleção, assinadas por nomes de primeiro nível como Andy Warhol e Robert Rauschenberg, para financiar a compra de outras peças de artistas pertencentes a coletivos sub-representados em suas salas. Principalmente de mulheres e afro-americanos. Trata-se de "corrigir ou rescrever o cânone artístico do pós-guerra", diz o diretor do museu, Christopher Bedford, um escocês de 40 anos que chegou ao BMA há dois anos com a deliberada vontade de sacudir as estruturas.
"Nosso mandato como museu consiste em colecionar as obras mais relevantes da atualidade. Para conseguir isso, temos de nos livrar de preconceitos de outros tempos, que institucionalizaram o racismo e a discriminação de gênero dentro do museu e continuam a influenciar nossa abordagem à história da arte," afirma Bedford, que em 2017 foi curador do pavilhão dos EUA na Bienal de Veneza, ocupado pelo artista afro-americano Mark Bradford. "É uma tentativa de dizer que o relato narrado por nossa coleção não é exato, porque se baseia em princípios de exclusão que não se adequam aos nossos valores atuais", acrescenta. Considera que este desequilíbrio é ainda mais flagrante em uma cidade como Baltimore, de maioria afro-americana: segundo dados do censo de 2010, 64% de seus residentes são negros. No entanto, em uma tarde de verão, é difícil encontrar algum no museu, exceto os vigias das salas.
O BMA tomou medidas drásticas para acabar com essa situação. Em maio, o museu se desfez de cinco obras num leilão na sede nova-iorquina da Sotheby’s. Entre elas havia peças de figuras destacadas da abstração norte-americana, como Franz Kline, Kenneth Noland e Jules Olitski, além de um quadro da série Oxidation Paintings (1978), que Warhol realizou convidando alguns de seus amigos a urinarem sobre uma tela coberta de pintura metálica. Outro grande formato do artista pop, Hearts (1979), deveria ser transferido em uma venda privada nas próximas semanas, assim como um mural de Rauschenberg, Bank Job (1979), grande demais para ser exposto regularmente. Ao todo, a venda das obras, todas elas assinadas por homens brancos, deveria gerar um mínimo de 12 milhões de dólares (45 milhões de reais), que passarão a integrar um fundo destinado a cobrir os buracos no acervo artístico posterior a 1945. Até agora, o orçamento anual do museu para as novas aquisições era de 475.000 dólares (1,78 milhão de reais).
Parte desse dinheiro já foi reinvestido. Serve para comprar obras de artistas como Wangechi Mutu, Isaac Julien, Njideka Akunyili Crosby e Lynette Yiadom-Boakye, todos eles oriundos da diáspora africana. Na lista também figura Amy Sherald, artista afro-americana de 44 anos que reside em Baltimore desde 2002 e que ficou conhecida quando Michelle Obama a escolheu para assinar seu retrato oficial. “Não entendo por que se dá tanta importância a isso. É importante que o acervo esteja em dia. Além disso, os autores das obras vendidas já figuram em museus de todo o mundo”, argumenta a artista, que também participa do conselho de administração do BMA. “Diversificar era um passo necessário. O museu toma esta decisão porque o mundo da arte está mudando. Começa-se a contemplar o trabalho que os artistas negros estão fazendo há décadas. Nossas obras devem ser expostas nas salas dos museus, e não só nos porões de centros culturais”, diz Sherald durante uma pausa na rodagem da nova série do Spike Lee para a Netflix, em que interpretará a si mesmo.
Há vários meses o museu propõe um diálogo incômodo, mas estimulante, e discute internamente a necessidade de refletir a experiência afro-americana no museu, assim como o recente vídeo ultraviral que Beyoncé e Jay-Z filmaram no Louvre. As obras dos mestres dos últimos dois séculos, de Fragonard a Pollock, convivem com as colchas bordadas de Stephen Towns, jovem artista negro da Carolina do Sul, e com as alegorias sobre o escravismo propostas por Meleko Mokgosi, nascido em Botswana e radicado em Nova York. Durante este verão, todas as exposições temporárias são protagonizadas por artistas não brancos, encabeçados por Jack Whitten e seus monólitos dedicados a titãs da cultura afro-americana, de Muhammad Ali a Maya Angelou, e por Maren Hassinger e sua mistura de arte povera e performance tingida de negritude. Além disso, uma pequena exposição recorda a pioneira mostra dedicada à arte afro-americana que o museu recebeu em 1939, e que também seria uma das primeiras em todo o país. Baltimore aspira a reocupar agora essa mesma vanguarda. “Queremos ser um modelo a seguir”, admite o diretor.
O gesto é louvável, mas pressupõe que qualquer visitante afro-americano sempre preferirá ver uma obra de um artista de sua mesma cor de pele que um quadro de uma figura fundamental como Warhol. “É alguém importante para todo mundo, também para os negros. Mas já temos muitas obras dele no museu. Contamos com uma superabundância de material que nos faz continuar contando a mesma história da arte repetidamente”, responde Bedford. “Acho que podemos fazer um trabalho mais efetivo se nos desfizermos de uma ou duas obras dele. Não terá praticamente nenhum impacto em nossa maneira de relatar a história da arte.” É verdade que o museu conta com outras 94 obras de Warhol em seu acervo, e que os demais artistas revendidos também continuarão figurando na coleção através de obras que o BMA considerou de maior qualidade. Não se pode esquecer que Kerry James Marshall, novo superastro da arte afro-americana, que em maio bateu um recorde ao vender um de seus quadros por 21 milhões de dólares (78,7 milhões de reais) costuma recorrer a um homem branco para resolver seus problemas com a reprodução da luz sobre a tela. Seu nome é Rubens.
Nenhum comentário:
Postar um comentário