terça-feira, 27 de janeiro de 2015

"Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia"

ÊI, EU SOU O AÇUDE GRANDE!

Eduardo Pereira – dudaleu1@gmail.com


Açude Grande Velho de Guerra

Era o Açude Grande que abastecia a cidade de Cajazeiras como água potável. Um jumento com cangalha que suportava quatro latas d’agua de vinte litros ou uma carroça-pipa conduzida por um jegue eram os transportadores dessa água que transitavam pelas ruas de Cajazeiras. A água era despejada em potes de barro que recebia um pano em sua boca para coar. O tratamento da água era simplesmente esse. Não me lembro de se ter alguém contraído alguma doença por isso.

Logo após veio a instalação das tubulações beirando as calçadas das casas para escoamento das águas, causando as escavações uma faixa desnivelada no calçamento das ruas após recobertas pelos paralelepípedos. Para dentro de casa os canos de ferro eram pregados nos pés de paredes com presilhas de metal, e, num segundo momento, ia-se embutindo-os. A água encanada, uma das maiores invenções do homem, juntamente com o esgoto e o concreto, na concepção do saudoso Millôr Fernandes, chegava a Cajazeiras como sinal de modernidade. Acredito que era fins dos anos cinqüenta para início dos sessenta. Possa ser que me engano cronologicamente.

O Açude Grande então passa a ser a praia de Cajazeiras, pelo menos para nós moleques que lá íamos tomar banho, principalmente em dias de chuvas, correndo pelo balde do açude; ou ponto de apreciação de sua sangria em cima da ponte, ou debaixo dela na água vazando rumo ao Estádio de Futebol Higino Pires; ou, mais ainda, inspiração poética para os vates da cidade.

Suas águas também foram fonte para lavagem de roupas na lavanderia que lá existia. Toda quarta-feira dona Ana, a lavadeira lá de casa, que se juntava a tantas outras dona Ana da cidade, carregava uma trouxa de roupa na cabeça para lavar. Minha mãe fornecia-lhe barras de sabão e pedra anil. Foi um ritual que perdurou por muitos e muitos anos.

Um pouco mais pra frente do tempo o Açude Grande é colocado de escanteio e recepciona a especulação imobiliária, dejetos, esgotos, descaso. Sua pureza degringolava porque Boqueirão já de a muito  mata a cede da população com água tratada.

O crescimento da cidade, aliado às tradicionais secas impostas pelos desígnios da natureza e as habituais explorações da indústria da seca pelo viés político, decantada em ensaios acadêmicos e reportagens de jornais sempre fungaram no cangote do Açude Grande como a dizer que um dia sua água seria novamente consumida com o selo da qualidade potável regulado por órgãos fiscalizadores tipo Agência Nacional de Água.

Nos sítios ao redor de Cajazeiras o projeto oficial do governo federal de sisternas veio para amenizar o clima de seca anos setenta. E o Açude Grande olha de esguelha, quase implorando: “Ninguém quer me recuperar?”. Já mais recentemente apareceu o sonho da transposição do Velho Chico. A engenharia moderna cava serrotes e rochas como se estivesse enfiando um dedo no nariz, e carradas e mais carradas de cimento sedimentam o caminho de um novo sonho de água em abundância. E o Açude Grande, bem pertinho dali de São José de Piranhas, só observando com o rabo do olho, como gurejando uma graninha pra tomar banho, pra ficar limpinho.

No tempo presente São Paulo, e agora Rio de Janeiro e Minas, assustam o país e diz que está com a garganta seca, quer beber água, mas água já não há mais praticamente, e todos nós começamos a familiarizarmos com uma nova linguagem: reserva técnica, racionamento, volume morto... Espere um pouco. Essa linguagem também não é a de Boqueirão, que abastece Cajazeiras, Souza, e os ribeirinhos? Te cuida, Açude Grande, que está chegando a tua hora de dizer que está morrendo afogado! Se é que já não está morto.  

Observação: não me digam que há verba para recuperação do Açude Grande, mostrem fotos das obras sendo realizadas, na prática!

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