Almanaqueiras: ou não queiras.

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segunda-feira, 2 de abril de 2012

O dia em que Millôr e eu enterramos o papa tomando uísque
IARA CREPALDI


 O desenhista, jornalista, dramaturgo e escritor Millôr Fernandes em outubro de 1970



É com uma dose de uísque na mesa que escrevo minha despedida para o Millôr. Porque foi assim que assistimos juntos ao enterro do papa João Paulo 2º e também foi assim que tivemos nossa primeira conversa telefônica --e, acho, se pudesse, é o que ele estaria fazendo agora.


Apesar de acumular habilidades de um renascentista --chargista, ilustrador, jornalista, escritor, dramaturgo, tradutor (dizem que falava 11 línguas), roteirista, campeão da pesca do atum no Canadá e inventor do frescobol, entre outras coisas--, sua faceta mais impressionante era a de sarrista, inteligente, crítico, boca-suja. E foi assim que cheguei até ele.

Millôr tinha aversão a entrevistas e não atendia ao telefone. Era 2003, eu estava no Rio e precisava de um depoimento do guru do Méier sobre o carnavalesco Joãozinho Trinta. Porém, sua secretária eletrônica --uma gravação com a voz do Millôr dizendo "fale ou faxe"-- atendia todas as ligações. Então, resolvi deixar um recado insólito, e ele puxou o telefone imediatamente: "Que mensagem é essa? O que você quer de mim? Eu só falo besteira".

Bebia uísque e contemplava o pôr-do-sol, como ele disse --preparei uma dose para acompanhá-lo. Falou besteira por uma hora e inventou uma música que dizia que eu era irmã do João Ubaldo. Rimos muito.


Dois anos depois, entrevistei Millôr novamente. O papa tinha morrido, e ele achou que deveríamos tomar mais uma dose (desta vez, ao vivo) em sua cobertura na av. Vieira Souto, com a TV ligada --sugeriu também que ficássemos descalços, porque não gostava muito de usar sapatos em casa. Millôr estava empolgado com a cerimônia ("um dos maiores episódio da humanidade"). Falou uns cem palavrões. Comparou as roupas dos religiosos com os vestidos das baianas, chamou o Itamar [Franco, ex-presidente] de "viadinho", imitou o Michael Jackson, esculhambou com toda a humanidade, incluindo ele, e eu, claro.

O cuco na parede badalava a quinta hora, e ele não parava falar. Um assunto emendava em outro e seu discurso durava muitos minutos. Pedi para que se descrevesse, e ele disse que a gente nasce feliz ou infeliz e que ele não tinha nascido "down" (pra baixo).

De nossa conversa, muitas coisas e pessoas se foram. E Millôr se foi, levando com ele a arte da conversa fiada, do uísque na hora errada, do riso rebelde, do deboche interessante, do pouco caso de tudo que é sério, e também um pouco da nossa felicidade. Mas, se ele estivesse no céu com as figuras que ele esculachou, o papa, Joãosinho Trinta, Michael e Itamar, estaria fazendo todos eles rirem da gente agora. Tin-tin.





IARA CREPALDI é jornalista

Fonte - Folha SP

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