Almanaqueiras: ou não queiras.

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terça-feira, 5 de junho de 2018

os hippies dos anos 1960 Deixaram pais caretas de cabelo em pé para depois dar lugar a uma das gerações mais caretas que se tem notícia: a nossa. A mim não consola, só estarrece.

Pais caretas de ontem e hoje 

Vera Iaconelli 


Jovens hippies dos anos 1960 deram lugar a uma geração ultracareta: a nossa


No imperdível e já bem comentado filme "Eu, Mamãe e os Meninos" (2013), Guillaume Gallienne faz um retrato autobiográfico impagável de sua relação um tanto bizarra com a mãe. Comédia leve e surpreendente que revela o jogo de forças entre as expectativas sociais, a forçada de barra materna e a descoberta do próprio desejo.

Basicamente, Guillaume é criado de forma diferente dos irmãos homens. Deles eram esperados comportamentos masculinos, enquanto dele, comportamentos femininos. Paremos por aqui, em respeito a quem não assistiu.

A ideia de que basta oferecer à criança os ícones de um gênero para que ela se torne isso ou aquilo faz parte de nossa crença nos superpoderes parentais.

Essa fantasia onipotente convive com a crescente percepção de impotência dos pais em conseguir que as crianças os obedeçam. Dois lados da mesma moeda, pois onipotência e impotência se alternam. Cabe a nós a tarefa de assumir nossa potência real.

Trajes e trejeitos nunca foram sinônimo nem de identidade de gênero (homem, mulher...), nem de orientação sexual (heterossexual, homossexual...), ou seja, não são capazes de forjar identificações, nem garantir desejos.

Na corte francesa de Luís 14, por exemplo, a indumentária dos homens era de deixar o carnavalesco Clóvis Bornay babando. O Rei Sol foi modelo da masculinidade de sua época e sabidamente um amante de mulheres, mas seu visual e hábitos não passariam impunemente pelos machões de plantão de hoje.

Por outro lado, temos os homens da antiguidade clássica, que desaprovavam comportamentos efeminados, mas que entendiam a virilidade de forma diferente da nossa. Os meninos eram iniciados sexualmente pelos mais velhos, fato também observável em algumas tribos indígenas.

Não se trata de homossexualidade, mas de uma forma aceita de passagem à vida adulta e dos mistérios da masculinidade em certas culturas.

Conhecer as diferentes formas como construímos os ideais do que convencionamos chamar feminilidade e masculinidade pode aplacar algumas paranoias parentais.

Se servir de consolo a alguns, os hippies dos anos 1960 eram a favor do amor livre, bissexual e do visual andrógeno. Deixaram pais caretas de cabelo em pé para depois dar lugar a uma das gerações mais caretas que se tem notícia: a nossa. A mim não consola, só estarrece.

Não, seu filho não se torna gay porque você ou qualquer pessoa assim o deseja. Tampouco se torna heterossexual, pois o desejo é justamente o que existe de mais singular e insondável em cada sujeito.

Por outro lado, os ícones da feminilidade e da masculinidade (cabelo, roupas) são só ícones. Identificamo-nos inconscientemente com eles desde pequenos, nos são caríssimos e arraigados, mas suas expressões mudam ao longo da história e das culturas.

Por isso mesmo, soa esquisito uma excessiva preocupação com a negação deles, por exemplo, ao criar crianças "sem gênero", como se esse fosse o "X" da questão.

Príncipes e princesas só são perniciosos quando a princesa vira "rainha compulsória do lar" e o príncipe um sapo machista.

Diferenças de gênero não podem ser confundidas com diferença de valor entre as pessoas. Fora isso, temos a propaganda enganosa de que poderíamos controlar o desejo e as identificações dos nossos filhos. Bem que a mãe de Guillaume tentou, peço... assistam.

Convenhamos, para o que vale educar nossos filhos, acima de tudo, é para a capacidade de tratar humanos como iguais, sob quaisquer circunstâncias. Nesse quesito não parecemos ter alcançado o mínimo desejável ainda.

Estão aí as paradas gays a nos ajudar com a lição.

Vera Iaconelli
Psicanalista, fala sobre relações entre pais e filhos, mudanças de costumes e novas famílias do século 21.

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