Almanaqueiras: ou não queiras.

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sexta-feira, 8 de junho de 2018

O burro culto

Nada se cria dentro de suas cabecinhas ocupadas em decorar e imitar


Tati Bernardi 


Tem um tipo específico de ser humano que talvez seja —e olha que compete com eleitores do Bolsonaro— o pior da espécie. Não existe gente mais chata, mais pedante, mais desinteressante —e olha que compete com as meninas de voz anasalada que falam alto nos restaurantes de Pinheiros— do que os burros cultos.

Você, se não for uma prova viva de meu desacato, que vai andando e citando filósofos por aí, provavelmente já aturou (ou segue suportando) alguns deles.

São pessoas absolutamente sonsas (não entendem piada, não percebem ironia, não têm a sensibilidade de encerrar uma enfadonha conversa antes que todos sintam um leve desejo de falecer, não sentem empatia, adoram chamar gente complexa de louca, amam chamar pessoas com personalidade de controladoras e têm a inteligência emocional de um filhote de dálmata), mas que, vai entender, de repente soltam um: "Essa obra está no museu Hermitage, em São Petersburgo. Ah, sim, eu falo russo".

Oi? Você não consegue formular uma simples frase em português sem se perder e contar outras 56 histórias longas e banais em vez da que queria contar, além de sempre citar, totalmente fora de contexto, o Lévi-Strauss, e vem me dizer que fala russo?

É, pensando bem, é russo mesmo que você fala. Os burros cultos são, e aqui cabe a repetição pois sou bastante obsessiva no assunto, o pior da espécie.

Os cultos burros falam difícil e falam muito e falam, principalmente, tudo o que já foi dito. Nada se cria dentro de suas cabecinhas ocupadas em decorar e imitar e teatralizar a sapiência alheia.

A erudição que exibem em suas prateleiras é graças a um anseio parodiado. O refinamento que têm para obras de arte é devido a uma delicadeza emprestada. A instrução que cospem em discursos topetudos é resultado de uma iluminação arrendada. A musicalidade requintada do tilintar de seus dedos (que tocam quase sempre o melhor do design) é resultado de apuro plagiado. A sofisticação que têm para filmes é à custa de um encantamento alugado.

Citam, com a mecânica arrogante dos que não se intimidam com a própria defasagem emocional, os títulos originais, os nomes dos atores com o acento correto e, quiçá, o ano em que ganharam o Urso de Ouro. Mas pergunte o que acharam da história.

Não o que o crítico de sua preferência achou. Não o que o professor do terceiro mestrado disse. O que ELES pensam! Provoque-os a expor alguma apreciação sem que transcrevam ou mencionem ou façam alusões.

Você descobrirá que o silêncio também pode gaguejar. Você descobrirá um corpo muito raquítico e quase transparente por baixo de muy refinada indumentária costurada às melhores mãos

Em uma conversa na qual pessoas decentes pedem licença para "achar", os cultos burros atropelam todos com certezas. Sempre em dia com seus garimpos intelectuais, não saem sem uma lição de casa chamada "o que devo pensar hoje segundo os que pensam?".

Até memorizaram um ou outro ensaio de psicanálise, mas são o tipo de pessoa (já falei que o pior da espécie?) que, quando de frente para um divã, falam de como são incertos, aflitos, altivos, temíveis... os outros. Até na hora de tentarem alguma restauração para a parte interna de suas couraças envernizadas, citam angústias de outrem,

Segundo Lacan. De acordo com Hegel. Groucho Marx já falava. Como dizia o poeta. Assim falou Zaratustra. De tão anulados por tudo o que replicam, às vezes fica até difícil lembrar seus nomes. Mais fácil chamá-los mesmo de cultos burros, de burros cultos ou de o pior da espécie.

Tati Bernardi
É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem seis livros publicados.

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