Almanaqueiras: ou não queiras.

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quinta-feira, 3 de maio de 2018

você pode até ser meu amigo, mas não me chame pra essa farra descomunal.

O escândalo do prazer

Contardo Calligaris 


Existe uma religiosidade que não exija uma renúncia aos prazeres do corpo?

Assisti a "Wild Wild Country", o documentário dos irmãos Way (Netflix) que narra a luta travada, nos anos 1980, entre, de um lado, a comunidade rajneesh e, do outro, o povo e o governo do Oregon, EUA.

Bhagwan Shree Rajneesh (também conhecido como Osho) era um guru já famoso nos anos 1970, em Pune, Índia. Quando levou a comunidade de seus seguidores para o vilarejo de Antelope, Oregon, ele encontrou a censura e o ódio da população local.

No embate, os oregonianos se revelaram sinistros, intolerantes, quase fascistas no seu conformismo. Uma troca divertida resume o clima. Um repórter de TV pergunta a Ma Anaand Sheela (secretária de Bhagwan): "É verdade que na sua comunidade o sexo é livre?" e há, no tom dele, aquela mistura de caretice e de excitação reprimida da qual só um censor é capaz. Sheela responde: "Sim, o sexo é livre, a gente não cobra por ele".

Em suma, eu deveria preferir os rajneeshes, só que, infelizmente, não gosto de seitas: a coesão do grupo e a idealização do líder são para mim quase as origens metafísicas do mal.

Sem tomar partido, só me resta tentar entender qual foi o escândalo que tornou os rajneeshes intoleráveis para os oregonianos.

Para evitar qualquer spoiler (o documentário é um thriller), usarei uma lembrança minha.

No começo dos anos 1970, eu vivia entre Paris e Genebra, onde dividia um apartamento com uma amiga milanesa, a qual um dia foi para a Índia e voltou rajneesh, vestindo só a cor laranja.

Da viagem seguinte, ela trouxe um namorado, também de laranja, com quem ela fazia sexo o tempo inteiro —o que me pareceu ótimo.

Outra vez, minha amiga levou a mãe viúva para a Índia. E elas decidiram doar uma parte conspícua de sua fortuna (considerável) para o Bhagwan. Achei suspeito.

Enfim, um dia, minha amiga voltou da Índia com a incumbência de comprar um relógio de presente para Bhagwan. Fomos à Van Cleef & Arpels, rue du Rhône, onde ela encomendou e comprou um patacão cravado de pedras preciosas, uma peça única, por US$ 200 mil.

Estranhei um pouco, e ela me explicou que o carma do Bhagwan estava quase extinto: a qualquer momento, ele se libertaria do ciclo das reencarnações. Os discípulos queriam que ele ficasse na Terra mais um pouco e tentavam segurá-lo com ouro, joias e carros Rolls-Royce. Os presentes ancorariam o Bhagwan, como o lastro que impede o balão de ar quente de subir e perder-se nas alturas do céu.

Não tenho nada contra carros Rolls-Royce e relógios. Também achava interessante o tipo de meditação que Bhagwan propunha (com técnicas de respiração que chegavam a alterar a consciência) e aprovava a liberdade sexual da comunidade rajneesh.

Mas pensei: ela caiu nas mãos de um charlatão fraudulento. É que havia, para mim, uma óbvia contradição entre uma espiritualidade verdadeira e o gosto por relógios ou carros de luxo. De onde me vinha essa ideia?

De fato, eu apenas aceitava um grande lugar-comum que parece ser próprio a todas as culturas em que se pensa que a alma ou o espírito ou a subjetividade da gente sejam diferentes do corpo —ou seja, nas culturas em que cada um diz espontaneamente que ele "tem" um corpo, e nunca que ele "é" um corpo. Pois bem, nessas culturas todas, vige a ideia de que a gente só teria acesso à verdade espiritual pela ascese, ou seja, renunciando (ao menos em parte) ao corpo, ao prazer e aos bens materiais.

Isso vale para o hinduísmo, para o budismo (o caminho do meio budista é moderado, mas não deixa de ser uma ascese) e para o cristianismo. Talvez valha menos para o judaísmo. Mesmo assim, de Deus e do espírito, em qualquer denominação, espera-se que eles reprimam nosso hedonismo "sem-vergonha" e nosso materialismo "desenfreado".

Seguindo o lugar comum, eu achava que só um charlatão promoveria uma espiritualidade sem ascetismo, sem renunciar ao prazer.

Acredito que os cidadãos de Antelope, Oregon, tolerariam os rajneeshes tomarem sol pelados, transarem, pularem e dançarem até orgasmos tântricos. Também tolerariam Bhagwan com seus 20 carros Rolls-Royce, seu jatinho e seus relógios —mas à condição de que tudo isso não fosse declarado compatível com o caminho de uma espiritualidade verdadeira: façam o que quiserem, mas não me digam que isso é religião.

Bhagwan, ainda hoje, continua estranhamente revolucionário: quem mais promove uma espiritualidade que não seja ascética, ou uma religiosidade que não exija uma renúncia ao prazer?

Contardo Calligaris
Italiano, é psicanalista. Deu aula de estudos culturais em NY. Reflete sobre cultura e modernidade.

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