Almanaqueiras: ou não queiras.

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segunda-feira, 7 de maio de 2018

um livro é um livro, é um livro! E qualquer texto capaz de despertar curiosidade em um jovem, sobre a vida e sobre si mesmo, merece ser celebrado.

Como nos tornamos leitores 

Juliana de Albuquerque 



Qualquer texto capaz de despertar a curiosidade em um jovem deve ser celebrado

Em sua última entrevista televisionada, Clarice Lispector conversa com Júlio Lerner sobre o desenvolvimento do seu interesse pela literatura. Ela relata que a produção escrita da jovem Clarice era caótica, e que as suas primeiras referências literárias misturavam clássicos universais e livros cor-de-rosa: "Eu escolhia os livros pelos títulos e não pelos autores". A partir desse relato lembro-me de que também foi assim —misturando tudo— que cheguei até alguns dos meus escritores prediletos.

Por exemplo, o meu primeiro encontro com Rilke não se deu em sala de aula, nem no colégio, e menos ainda no curso de alemão, mas através das páginas de um romance de espionagem. Depois desse encontro, outros vieram, sempre acidentalmente e através das situações mais inusitadas.

Eis uma pequena lista das minhas primeiras aventuras literárias: alguns felizardos alegam ter descoberto Goethe na biblioteca dos seus avós. Eu, não. A minha avó não suportava alemão. Uma vez por semana vovó me ensinava francês e juntava-se ao meu pai para discutir o que ambos chamavam de Clarté Française. "Filhinha!", dizia a minha avó com a sua voz sempre mansa, "nenhum outro povo escreve com tanta clareza." Ao que o meu pai acrescentava: "Talvez os ingleses, mamãe. Não devemos menosprezar os ingleses!"

Mal sabiam eles que Goethe emitira semelhante opinião. Pois, anos mais tarde, encontrei nos registros de Eckermann o seguinte testemunho: "Os ingleses, em geral, escrevem bem, pois são oradores natos e pessoas de um senso prático todo voltado à realidade... Os franceses, também, no estilo não negam seu caráter geral... Esforçam-se por ser claros, a fim de convencer o seu leitor, e elegantes, a fim de agradá-lo." Naquela época, porém, essa especulação não me convencia. O que eu gostava mesmo era de uma boa história cheia de absurdos e gozações, e foi assim que cheguei a "Fausto": graças a um episódio de Chapolin Colorado.

Igualmente, o meu gosto pela obra de José Lins do Rego foi despertado por um livro didático descartado às margens do laguinho da UFPE. A mim pouco importava quem era o autor, mas a visita do Capitão Antônio Silvino ao Engenho Santa Fé fez-me rir como ninguém. O mesmo se deu com "O Cavalo que Bebia Cerveja", conto de Guimarães Rosa em "Primeiras Estórias": "Irivalíni, eco, a vida é bruta, os homens são cativos..."

Enquanto que Jorge de Lima eu fui buscar no cantinho mais escondido da estante do meu pai, certa de que, com aquele título, seria pornografia: "A Mulher Obscura". Despercebida de que, no futuro, parte daquela história também seria a minha. Destaco do autor: "... dois belos e mal traduzidos livros me bolaram permanentemente a cabeça...Costumo ver neles muita coisa de meu fiat, a razão de ser de muita coisa realizada e irrealizada em mim, sou pela realidade deles, como pelas deformações de minha pessoa..."

Enfim, durante a adolescência o meu gosto literário desenvolveu-se por acaso e nas horas vagas, misturando tudo que me chamava atenção às leituras obrigatórias da escola.

Talvez seja por isso que hoje, ao lecionar para estudantes recém-chegados do ensino médio, digo-lhes não me importar com os autores que eles tenham lido no passado. Para mim basta que eles tenham lido: um livro é um livro, é um livro! E qualquer texto capaz de despertar curiosidade em um jovem, sobre a vida e sobre si mesmo, merece ser celebrado.

Juliana de Albuquerque
É mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv e doutoranda em filosofia e literatura alemã pela University College Cork.

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