Almanaqueiras: ou não queiras.

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quarta-feira, 30 de maio de 2018

Tempo sem rumo, tempo de Bolsoshit

Candidato da extrema direita defende bandeiras localizadas, como hoje é a regra

Marcelo Coelho 


Não que eu estivesse animado —mas acabei lendo a biografia de Jair Bolsonaro, um livro de menos de 200 páginas escrito pelo filho dele (ed. Altadena).

A imagem que se projeta de "Bolsonaro - Mito ou Verdade" não é de um sujeito enraivecido, espumando contra o atual estado de coisas. O tom do livro segue um pouco as aparições do deputado na televisão: muito sorridente e brincando com a própria fama.

É assim, por exemplo, que Bolsonaro aponta o dedo, como se fosse um revólver, para seus interlocutores, enquanto ri simpaticamente. "É, eu sou assim mesmo, mas você sabe que no fundo eu não sou assim..." Mas ele é.

O livro traz muitas passagens que reforçam esse tom autofolclorizante, na linha "ah, esse Bolsonaro...! É mesmo incorrigível, hehe". Curiosamente, isso acaba dando um tom de justificativa, quase de desculpas, às diversas barbaridades que o tornaram famoso.

Ele defendeu o fechamento do Legislativo e a volta da ditadura? Sim. Em 1993, no plenário da Câmara, "fez um discurso veemente, denunciando que o Congresso estava à beira da falência e que, se desse mais um passo rumo ao abismo —o que já estaria muito próximo— seria favorável a um regime de exceção".

A frase teve impacto, rendendo a Bolsonaro um processo por quebra de decoro parlamentar. O livro, então, explica: "A força de expressão de Bolsonaro foi levada ao pé da letra".

Também era força de expressão quando o deputado pediu o "fuzilamento" de Fernando Henrique Cardoso. Pediu? Não exatamente, a crer pelo livro.

Ele apenas "sugeriu", e era tudo "alusão a uma declaração do avô de FHC, que falara em fuzilar a família real na época da proclamação da República.

Há mais gente, claro, na lista de fuzilamentos sugeridos por Bolsonaro. A propósito dos 111 mortos no massacre do Carandiru, o deputado declarou que "morreram poucos, a PM tinha que ter matado mil".

Ah, "ele é assim mesmo". Pressionando pela aprovação de uma emenda ao Plano Real, apareceu com "um saco plástico com estrume de vaca, bem mole, e ameaçou jogar em todo mundo caso ela fosse rejeitada". Haha, era um "tempero à la Bolsonaro", diz o autor do livro. "Ele jamais faria uma coisa dessas. Quer dizer, sei lá."

Outras vezes, ele exige respeito. Bolsonaro lembra que estava defendendo mudanças na legislação quando a petista Maria do Rosário o acusou de "promover essa violência".

Ele retruca: "Grava aí, eu sou estuprador agora". "É, estuprador", insistiu a deputada. Foi assim, diz o livro, que, "num ato reflexo", Bolsonaro reagiu "à revoltante acusação", dizendo que a deputada não "merecia ser estuprada por ele".

Em vários momentos, o "durão" Bolsonaro utiliza a tática da "vitimização" que aponta como típica da esquerda. A Lei da Anistia só favoreceu os "terroristas", diz ele, porque os militares (e torturadores) continuam "sendo perseguidos".

Na mesma linha de inversão histórica, o livro afirma que não apenas o impeachment de Dilma não foi golpe mas que tampouco houve golpe em 1964!

O argumento é que o Congresso declarou vago o cargo de presidente da República —de modo que tudo teve respaldo constitucional.

Torturadores são vítimas, golpistas são democratas, fuzilamento é força de expressão —mas pode não ser. Ameaçar jogar esterco numa comissão legislativa é só um "tempero" por parte de quem "exige respeito" dos adversários.

A lógica, como se vê, é a do arbítrio: cada coisa será o que eu disser que é, a lei valerá exceto nos momentos em que deixa de valer. A ordem vencerá pela baderna.

Nada disso espanta, em se tratando de Bolsonaro. Mas outra coisa me chama a atenção. É que suas causas e opiniões são extremamente localizadas: a denúncia do suposto "kit gay", a diminuição da maioridade penal, a posse de armas, a crítica a ambientalistas e quilombolas...

Ele não tem "plataforma" presidencial, com ideias sobre economia, educação ou o que quer que seja. É o que permite a um ou outro pateta ultraliberal achar que pode orientá-lo; poderiam também chamar Mangabeira Unger.

A carência de um plano geral está de acordo com este tempo de baixa representatividade política. Em junho de 2013 já se juntavam todas as bandeiras num movimento só.

Nestes dias, reivindicações localizadas de caminhoneiros abrem nova caixa de Pandora; antipetismo, oposição a Temer, descontentamento e golpismo se agitam sem rumo, e, como um boneco de mola, Bolsonaro pula para o primeiro plano.

Marcelo Coelho
Jornalista, é membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e comenta assuntos variados.

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