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quinta-feira, 24 de maio de 2018

O lado mais obtuso do politicamente correto acaba de perder seu crítico mais agudo.

Philip Roth e os 'spooks' 

Sergio Rodrigues 


Morte do escritor priva o politicamente correto de seu crítico mais agudo

Irritado com a insistente ausência de dois alunos após as cinco primeiras semanas de aula, o professor universitário Coleman Silk pergunta à turma: “Alguém conhece essas pessoas? Elas existem mesmo ou será que são spooks?”

Paulo Henriques Britto, o tradutor brasileiro de “A Marca Humana” (Companhia das Letras), romance lançado no ano 2000 por Philip Roth, optou por não traduzir “spooks”. Sábia decisão. Não existe no repertório da língua portuguesa uma palavra que reúna a acepção de “fantasma” e a de ofensa racial a uma pessoa negra.

Silk paga caro por essa ambiguidade: perde o emprego com desonra e, talvez em consequência do estresse do episódio, também a mulher, Iris, vítima de um derrame. Mais do que isso, sua indignação de injustiçado furioso termina por afastá-lo dos amigos e até dos filhos.

Não faz diferença para seus juízes que, pelo contexto, seja evidente que Silk se referia à “possível natureza ectoplasmática” (palavras dele) dos estudantes faltosos e não à cor de sua pele, mesmo porque jamais os tinha visto. Sim, calhou de os dois serem negros, no fim das contas.

Ainda que óbvia, a boa-fé do professor é irrelevante. Uma das especialidades de Roth é ambientar personagens masculinos de individualidade forte em contextos históricos precisos e acompanhar os choques entre liberdade interior e prisão exterior —até o esmagamento inevitável, mas sempre com luta e sem rendição, da primeira.

O mal-entendido dos “spooks” acontece em fins dos anos 1990, quando a linguagem começava a se parecer mais claramente com um campo minado. Para quem não se lembra ou não era vivo, o autor explica que uma direita puritana começava então a descobrir os prazeres de surfar na onda esquerdista do politicamente correto. O objetivo era derrubar Bill Clinton da Presidência dos EUA por ter feito sexo oral com uma estagiária da Casa Branca.

Como ocorre também em outras obras de peso lançadas naquela quadra da história, como o romance “Desonra”, de J.M. Coetzee, e a peça teatral (e filme) “Oleanna”, de David Mamet, a queda em desgraça de Silk tem tanto a ver com seu orgulho ultrajado quanto com o incidente —no caso, ridículo— que a deflagra.

Num cenário punitivo e paranoico em que a euforia da correção de injustiças históricas no atacado começava a atropelar os cuidados para evitar injustiças no varejo, Silk devia expiar —por motivo fútil, mas paciência— o pecado maior de ser um homem branco em posição de poder.

O gênio do autor está nas voltas do parafuso que vêm em seguida: a malhação do professor judeu mal disfarça seu fundo de antissemitismo; e, na mais pungente das ironias, Coleman Silk nem é judeu de verdade, mas um negro de pele clara que, em sua juventude, decidiu assumir uma identidade judia para “passar” por branco.

Nos obituários que abundam desde ontem, Philip Roth vem sendo saudado como um dos maiores escritores americanos de todos os tempos. Faz sentido. Sua esnobação agora irreversível pelo Nobel é mais um tirambaço que a Academia Sueca dá no próprio pé.

Entre suas qualidades, não será uma das menores a determinação de encarar a complexidade da linguagem —e do furdunço humano que a gerou e que ela nomeia— sem se intimidar com a santimônia do nosso tempo.

“Spook” causou a ruína do professor Silk, mas não iria para a lista negra de Roth. “Lista negra” também não, por ser uma expressão historicamente inocente do crime de racismo, embora ande na moda dizer o contrário. O lado mais obtuso do politicamente correto acaba de perder seu crítico mais agudo.

Sérgio Rodrigues
Escritor e jornalista, é autor de ‘O Drible’ e ‘Viva a Língua Brasileira’, entre outros.

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