Almanaqueiras: ou não queiras.

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sábado, 5 de maio de 2018

o esforço de sociedades liberais para conter seus impulsos racistas, sexistas, homofóbicos

Apropriação indébita 

Helio Schwartsman 



Por que objetos culturais deveriam ser de uso exclusivo do grupo que os criou?

Causou celeuma nos EUA o caso da garota de Utah que foi ao “prom”, o baile de formatura do ensino médio, de sua turma usando um “qipao”, o vestido tradicional chinês. Como ela não tem ascendência asiática, logo foi acusada de apropriação cultural nas redes sociais. A polêmica cresceu e ganhou registro em jornais de todo o mundo.

Como defensor da liberdade de expressão em sua forma robusta, não morro de amores pelo politicamente correto (PC). Não chego, porém, ao despautério de descrevê-lo como uma praga a ser extirpada.

Faz mais sentido pensar o fenômeno como o efeito colateral de um movimento absolutamente desejável, que foi o esforço de sociedades liberais para conter seus impulsos racistas, sexistas, homofóbicos etc. A origem virtuosa, obviamente, não deve nos impedir de denunciar e combater suas manifestações mais exageradas.

Embora não concorde, enxergo a lógica dos que acham que piadas que insultem minorias, por exemplo, devem ser evitadas. Para eles, a dor que esse tipo de humor causa em algumas pessoas basta para recomendar sua proscrição. Mas, quando chegamos ao capítulo “apropriação cultural” da cartilha do PC, confesso que já não entendo nem o raciocínio que a legitimaria. Por que diabos objetos culturais como canções e trajes icônicos deveriam ser de uso exclusivo do grupo que os criou?

Se há algo que diferencia o homem de outros animais, é a facilidade com que ele incorpora e transmite inovações culturais. Elementos tão variados como o alfabeto e a tecnologia do arco e da flecha foram inventados não mais do que três ou quatro vezes ao longo da história da humanidade —e depois se difundiram através de uma longa cadeia de apropriações. Até o Deus único é invencionice de uma pequena tribo de pastores que vivia na Palestina lá pelo século 8º a.C., que acabou sendo imitada por outros povos.

A lista de originais humanos é bem mais restrita do que se presume.

Hélio Schwartsman
É bacharel em filosofia e jornalista. Na Folha, ocupou diferentes funções. É articulista e colunista.

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