Almanaqueiras: ou não queiras.

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quinta-feira, 3 de maio de 2018

“Acordei tava ligado o maçarico!”.

Sobre caxangas e memeias

Sergio Rodrigues 



Gírias são bacanas, mas ainda bem que Geovani Martins não se limita a elas

As gírias faladas nas favelas cariocas neste momento —porque daqui a pouco tudo muda, tá ligado?— estão na berlinda por obra do escritor Geovani Martins e seu livro de estreia, o volume de contos “O Sol na Cabeça” (Companhia das Letras), título mais rumoroso da ficção brasileira em muito tempo.

A revista piauí providenciou um glossário para explicar ao leitor, entre outras coisas, que “memeia” é frescura, “caxanga” é casa e “cu azul” é PM. Não falta interesse nesse tipo de informação, pelo contrário.

No entanto, embora divertidas, as curiosidades vocabulares são a parte mais superficial do trabalho de linguagem que um escritor deve fazer para dar um rolé na pista da oralidade radical, onde voa bala para tudo que é lado, e voltar de lá vivo.

Geovani está entre os que voltam, o que deve contribuir para que seu livro continue de pé quando as invenções vocabulares que o recheiam caírem no esquecimento ou virarem peças de museu. Essa obsolescência não costuma demorar. Alimentando-se de sua própria novidade e capacidade de surpreender, gírias têm baixa expectativa média de vida.

Umas poucas escapam espetacularmente à sina. Naquele glossário da piauí encontramos, como se novidade fosse, uma expressão velhinha de gerações: “dar um dois” (fumar maconha). Nada que se compare à boa forma miraculosa de “bacana”, gíria importada do lunfardo há bem mais de meio século e que já enterrou incontáveis criaturas mais novas, como “prafrentex” e “boko-moko” (perguntem aos anciãos, crianças).

Entrevistado para a série O Tamanho da Língua, que comentei aqui semana passada, o linguista Carlos Alberto Faraco chamou as gírias de “mangue da língua”, no sentido de serem criadouros onde a vida dos oceanos se renova. A imagem é tão boa que merece ganhar um desdobramento.

Pululante de vida, o mangue é também um terreno onde nos movemos com dificuldade, correndo o risco de atolar. Urbana ou regionalista, patoá de aviões do tráfico ou de cangaceiros, a coloquialidade profunda está apinhada dos destroços de escritores que mergulharam de cabeça em má literatura.

Não se discute que a vida da língua fervilha ali. É preciso entrar corajosamente no mangue. Conversando dia desses com o tradutor Caetano Galindo, ouvi dele uma queixa: a literatura brasileira oferece subsídios escassos a quem precisa forjar um equivalente nacional à prosa de um autor imerso na fala de submundos urbanos como o americano Richard Price. Ou Elmore Leonard, acrescentei.

A questão é como captar esse burburinho num meio de expressão feito para durar mais que a última moda, sem chafurdar em clichês nem sucumbir à ilusão de que basta ligar o gravador no ônibus lotado.

Trata-se de arte sutil que tem tanto a ver com registro quanto com criação, sem esquecer o ouvido colado na terra para captar tremores distantes de sintaxe e ritmo. Como disse Somerset Maugham a respeito da própria ficção, existem três regras para isso. Infelizmente, ninguém sabe quais são elas.

Muita gente discorda, mas, a meu ver, até alguns escritores de inegável sabedoria artística como João Antônio e Antônio Fraga saem meio chamuscados da busca pelo fogo da oralidade. Algo se perde quando a leitura requer ajuste de foco: isso aqui é “de época”, um “registro precioso” da fala de tal grupo.

Geovani Martins ainda não passou pelo teste do tempo, mas acredito que “O Sol na Cabeça” esteja bem equipado para sobreviver a ele. Menos por caxangas e memeias e mais pela sintaxe subversiva e luminosa de uma frase como “Acordei tava ligado o maçarico!”.

Sérgio Rodrigues
Escritor e jornalista, é autor de ‘O Drible’ e ‘Viva a Língua Brasileira’, entre outros.

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