Almanaqueiras: ou não queiras.

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quinta-feira, 26 de abril de 2018

“Oi, meu amor!”

Desencontro II 

Joaquim Ferreira dos Santos

Ninguém sabe quando se começa a conjugar o verbo “desnamorar” na voz passiva da sofrência comum aos dois gêneros

Eis que no corredor do shopping ela se aproxima de seu ex-amor, do seu ex-seja lá o que tenha sido, e como se estava vendo no último capítulo desta novela até agora sem drama, feita de uma cena só, ela carrega na mão um celular, a nova caixinha digital de primeiros socorros e salvamentos de emergência. Foi ele, sempre apitando um aplicativo, um dos primeiros gritos de alerta. Alguma coisa desacontecia.

Ela passava cada vez mais tempo debruçada sobre aquele oráculo moderno, uma quantidade imensa de minutos antes dedicados ao estupor mútuo de se maravilharem em palavras de espanto grato, em sustenidos de algaravia sexual, na felicidade não agendada de terem se encontrado com a vida já tão adiantada. Tudo rimava — até que numa noite o celular piscou demais ao lado da cama, no dia seguinte um dos dois deixou escapar um muxoxo mais enfático de cansaço, depois houve um fim de semana em que só encaixaram beijos de boca fina. Aos poucos, sem fazer alarde, os versos do poema, antes tão rimados, sempre dormindo de conchinha, começaram a se revelar de pé quebrado.

Ninguém sabe quando se começa a conjugar o verbo “desnamorar” na voz passiva da sofrência comum aos dois gêneros, mas ele existe na gramática crua dos sentimentos. Está catalogado como pronominal transitivo direto, com direito a definição curta no Houaiss da existência. Significa “desencantar-se”, “perder o interesse”. Foi o que aconteceu. Nada de ciúme, quebranto, vizinha faladeira ou carta anônima.

“Quem sabe o mal que se esconde nos corações humanos?”, era uma brincadeira que ele gostava de fazer, imitando o ar de terror gaiato com que uma voz anunciava um velho programa de rádio. Ela ria, se fingia assustada. Em seguida, ainda fiel ao roteiro do que ouvia no rádio da infância, ele mesmo respondia com voz trêmula, “O Sombra sabe”, e fechava o esquete com uma gargalhada sinistra bem próxima à orelha dela, orelha esta que em seguida ele cobria de beijinhos, e depois passava para a outra orelha, coberta então de mordidinhas, até que as duas ficassem repletas de palavrinhas não mais diminutivas, mas de intenções tão extravagantes que só podiam ser sussurradas, nem um decibel mais alto, sob o risco, brincava ela, de incorrerem em provas num processo de violento ataque ao despudor de uma fina dama carioca.

A tamanho cenário de maravilhamento amoroso seguiu-se o inevitável passar dos dias e suas ocorrências de tempos mortos, seu séquito de cenas dejávistas. O desencanto de que fala Houaiss foi se instalando nos silêncios durante o jantar, na apatia das pernas embaixo da mesa, e eis que sem um adeus, sem sequer um passe bem, acima de tudo sem a coragem de ele explicar a razão e o porquê de deixar o palco de um romance tão promissor, eis que agora é ela quem vem do outro lado do corredor e não há etiqueta prevista para uma situação dessas. Nem inimigos e nem “amigos simplesmente, nada mais”, como sugeria o samba-canção que o Caetano gravou e estava, vê-se agora que não por acaso, numa playlist que os dois trocaram pela internet.

Como beijar as bochechas dela com ar de displicência cotidiana e em seguida, como se fosse uma conhecida há tempos fora do GPS social, perguntar-lhe a banalidade de por onde tem andado, minha querida? Como se mostrar sinceramente interessado, sem que aos ouvidos dela soe irônico, pela saúde dos entes queridos? E ademais, como estar seguro que depois de tanto tempo sem dar notícia, ao parar à sua frente num corredor de shopping, disposto à conversação banal entre conhecidos, ela não desprezaria o cumprimento e, a mão espalmada sobre o peito dele, sem falar palavra, ela não faria com que se pusesse fora de seu caminho, seguindo com os olhos displicentemente postos nas vitrines?

Ele procurava avaliar o que haveria de possível ódio e justificável rancor nos olhos daquela de quem covardemente se afastara sem o cuidado de dizer foi bom, ou foi ruim, ou ter inventado uma desculpa de que chegou o outono e precisava ir ali ver a flor de Jade que estava para nascer no Jardim Botânico. No corredor do shopping, ele carregava apenas a preocupação de resolver a formalidade do encontro inesperado que se ameaçava. De resto, frio. Zero de aperto no peito, pressão arterial na normalidade do 12 por 8 de sempre.

Ela evidentemente já tinha visto quem se aproximava na outra ponta do corredor e sem piscar, elegante e inteligente, percebeu ter chegado a hora de um homem saber um pouco sobre o mal que se esconde no coração de uma mulher como ela, abandonada sem sequer o humor, tão comum aos dois, de se dizerem que “Hello, goodbye” seria música perfeita para eternizar a lembrança de romance tão rápido. Não era hora de gracinhas. No tempo dramático perfeito, foi marcando o tamanho dos passos para que quando cruzasse com ele os olhos dela súbita e falsamente se alegrassem com o que fingiam ver na tela do celular. Ela levou a caixinha de salvamento ao ouvido e, com a clareza necessária para que quem passasse ao lado não deixasse de ouvir como sua voz vibrava de felicidade, disse eufórica: “Oi, meu amor!”.

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