Almanaqueiras: ou não queiras.

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sexta-feira, 27 de abril de 2018

Ainda não existe lei que criminaliza o mais temível tipo de meliante.

O toque da marimba

Tati Bernardi


Se olhar pela janela verei o quê? Alguém sendo bastante faceiro fora do Instagram?


Só de lembrar, meu corpo inteiro arrepia. A angústia foi tamanha que me deu a velha conhecida compulsão por álcool gel, a mão está agora seca, ardida, trincada. Foi uma experiência tão fora da realidade que a casa inteira parecia em desordem, empoeirada, desalinhada. O teto chegou a ficar preto, só não desmaiei porque meu marido, ao ouvir o toque da marimba (também conhecido como o mais absurdo dos sons) correu para me acudir.

É isso mesmo? O celular está tocando? Não pode ser. Se eu olhar pela janela agora verei o quê? Alguém sendo bastante faceiro fora do Instagram? Uma longa, quase bem articulada e completamente inútil discussão em nome da “verdade absoluta” fora do Facebook? Um pombo trazendo um emoji?

Mas foi isso mesmo. Na manhã da última terça-feira, minha amiga Carolina resolveu me telefonar. Eu sei que você está se perguntando o que leva um ser humano, ainda mais um com este nome tão delicado, a cometer tamanho descaramento. Falei disso na terapia, debati o infortúnio em ao menos cinco grupos de WhatsApp. As conclusões são muitas e, portanto, nenhuma.

Talvez ela estivesse mergulhada em um tédio tão lamacento que a sujeira uma hora alcançaria sua reputação. Pode ter sido flashback de um ácido batizado da década passada. Tem gente apostando em vingança, falta de caráter, maldade no coração. Uma coisa é certa: serviu de alerta. Todos os amigos em comum bloquearam Carolina. Vai que ela resolve transformar seu surto psicótico em rotina.

Naquele dia, o nojo me impossibilitou almoçar. Pra conseguir lanchar à tarde, tive que antes limpar minha aura com muito chá de hortelã. Desculpem-me a riqueza de detalhes sórdidos, mas eu preciso desabafar: a voz de Carolina saía em tempo real do aparelho. E, pior: eu era obrigada a responder também em tempo real. Quem se lembra de quando éramos subjugados a esse ponto? Até fiquei quieta uma hora, pra ter certeza se era isso mesmo. E ela do outro lado: “alô? Alô!”. Quem se recorda do afrontoso “alô”?

Então inventam essa obra divina chamada “mensagem de áudio”. Essa maravilha que nos possibilita controlar o tempo da escuta e da fala. Essa joia que nos permite não apenas sermos sozinhos e egoístas mas sermos tudo isso rodeados de “amigos”. Esse milagre que nos autoriza a não escutar o outro ou escutá-lo apenas quando quisermos ou ainda 200 vezes até ter certeza se estamos irritados, enfadados ou com tesãozinho. E chega essa garota e nos atira na latrina de um tenebroso passado recente em que éramos obrigados a interagir sem edição?

Carolina, e aqui não podemos negar certa coragem (ou insanidade), ignorou por completo a maior conquista desse século e me telefonou. Quis “saber como andam as coisas”. É tanta falta de educação que eu, confesso, fiquei paralisada a ponto de responder “tudo bem, e você?”. Ela queria FALAR comigo. Por um aparelho chamado celular. Esse aparelho que tanta alegria nos traz quando utilizado para todas as milhares de coisas de que é capaz (quando não está altamente desqualificado por uma chamada telefônica). Usar o celular para telefonar é mostrar que você não entendeu nada sobre os últimos dez anos. Não entendeu nada sobre “a onda dos dedões com tendinite nas melhores clínicas fisioterapêuticas”. Não compartilha da obsessão da moda: se trancar no quarto para promover “a devida masturbação da própria imagem”. E, mais grave: não entendeu para que serve esse aparelho caríssimo que você salva antes dos seus joelhos quando cai na rua.

Ainda não existe lei que criminaliza o mais temível tipo de meliante. Carolina está por aí, livre, leve, solta e, socorro, provavelmente telefonando para as pessoas.

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