Almanaqueiras: ou não queiras.

Almanaqueiras: ou não queiras.

quinta-feira, 26 de abril de 2018

O que é, o que é?

O que é, o que é, meu irmão? 

Luiz Antonio Simas



Clássico de Gonzaguinha, concebido para exaltar a vida, será samba-enredo do Império Serrano no ano que vem. E lá vem polêmica

Até os leitores pouco afeitos ao carnaval devem estar sabendo do quiproquó que explodiu no meio das escolas de samba. O Império Serrano, escola que concentra o maior numero de sambas-enredo antológicos da história, abriu mão do gênero e desfilará no ano que vem cantando um sucesso da MPB: O que é, o que é?. Cantada em casamentos, churrascos, enterros (já fui a uns três em que acompanhou a descida do caixão), bares, igrejas e giras de macumba, a música de Gonzaguinha — clássico definitivo — chegará à Sapucaí. O debate está na ordem do dia.

A estrutura das escolas de samba, surgidas na primeira metade do século XX, não é original. As agremiações beberam na fonte dos ranchos carnavalescos (com a estrutura dramática dos enredos) e grandes sociedades (com seus desfiles bordados por fantasias temáticas e grandes alegorias) e agiram de maneira exusíaca. Explico o conceito: uma das atribuições de Exu, orixá das Áfricas que fincou bandeira na encruzilhada Brasil, é ser o enú gbárijo: a “boca coletiva”. Absorve tudo, transforma o que absorveu e restitui o absorvido como potência e movimento.

As escolas de samba trouxeram novidades à estrutura absorvida dos ranchos e sociedades: a dança da passista substituiu a coreografia dos ranchos, o canto das baianas substituiu o canto das pastorinhas e o samba urbano carioca, codificado e adequado ao canto no gênero samba-enredo, passou a ser a trilha sonora de sustentação do cortejo. Neste processo, a ala dos compositores atuou como setor pensante. Os fundadores das agremiações foram compositores. A ala, inclusive, foi um dos últimos segmentos das escolas a se derreter diante da concentração de poder na figura dos carnavalescos.

Responsáveis pela concepção visual dos desfiles, os carnavalescos passaram a escolher sambas, modificar letras, fazer experiências com as alas das baianas, se articularem com coreógrafos de comissões de frente para propor espetáculos emulando shows de cassinos internacionais, e apostar na dramatização rígida e nada carnavalesca dos cortejos. Conscientes de seus papéis, alguns exercem esse poder tentando dialogar com os alicerces do samba. Vejo uma nova geração promissora neste sentido.

A ala de compositores não existe mais como vivência cotidiana nas escolas faz tempo. Os concursos de sambas-enredo foram engolidos pelo monstro das disputas milionárias, escritórios, sambas encomendados, vídeos com “making of” das gravações dos sambas, etc. Neste processo, a formação de novos compositores é comprometida. Um segmento pensante das escolas de samba, que poderia ter a autoridade dada pela tradição e a vivência para pensar o carnaval em tempos difíceis, morreu.

Diante da crise do processo de escolha dos sambas-enredo (e não do gênero, que tem dado demonstrações de força), o Império de Silas de Oliveira e Ivone Lara não me parece ousado: a escola jogou fora a água suja da bacia — que precisa mesmo ir para o ralo — com a criança, tão bonita, dentro. Justiça seja feita e eu sou testemunha: O que é, o que é?, exaltação da vida que não foi composta para sustentar a narrativa de um enredo e o canto de um desfile de escola de samba, é uma boa trilha sonora de animados velórios.

Nenhum comentário:

Postar um comentário