Almanaqueiras: ou não queiras.

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segunda-feira, 30 de abril de 2018

“Cadê a mãe dessa criança?”

O sacolejo no canguru e o mala da manhã 

Gregorio Duvivier 


Acostumado à boêmia, não tinha me familiarizado com os chatos ao raiar do dia

São seis da manhã e minha filha acordou. “Agora é com você”, minha mulher me diz, com um olhar fulminante de quem virou a noite amamentando. “Dá teu jeito.”

Minha filha dorme bem, mas pra isso ela precisa de sacolejo. Não um balanço, como o Bebeto fez com seu bebê imaginário na Copa de 94. Tampouco funciona chacoalhar como se chacoalha um drinque numa coqueteleira (o resultado nesse caso vai ser uma espécie de piña colada no seu ombro).

Ela gosta mesmo é do sacolejo, aquele balanço irregular e imprevisível da caçamba de uma picape descendo uma ladeira de paralelepípedo. Na falta de uma caçamba, serve um passeio no canguru, aquela mochilinha porta-bebês.

Junto com o passeio, o batuque. Lá em casa, nenhum ritmo atingiu a eficácia da marchinha. “Foi Deus que te fez formosa”, canto, percebendo tarde demais o absurdo da frase. Ela não se importa. Dorme sorrindo, imaginando, imagino eu, o Carnaval.

Aproveito então pra comer um queijo-quente da vitória. Os atendentes da padaria já me conhecem e nem estranham quando, do nada, preciso voltar a sambar. E ela volta a dormir. Até que chega o chato das sete da manhã.

Não conhecia, antes da paternidade, o chato das sete da manhã. Acostumado à vida boêmia, me familiarizei desde cedo com o mala das três, que senta na sua mesa com o nariz coçando e altos projetos de documentário que nunca vão acontecer. Reconheço de longe o mala das cinco, que não articula nem o próprio nome mas quer discutir a relação (e vocês mal se conhecem). Passei mais tempo da vida em bares do que em padarias. Não tinha me familiarizado com o cardume de chatos em roupas de ginástica que irrompe no balcão ao raiar do dia.

Com olhar preocupado, o chato das sete interrompe meu queijo-quente: “Esse negócio não tá sufocando ela?”, diz, se referindo ao canguru.

“Sim, tá sufocando ela. Inclusive essa é a ideia, chama Child Suffocator, mas ela fez por merecer ser sufocada”, penso em responder, mas não tenho coragem. “Ela adora”, respondo.

Silêncio.

“Mas tem que ver, hein?”, o mala insiste. “Ver o quê?”, pergunto. “Tem que ver isso no médico, se não sufoca.” “Pode deixar, vou ver”. “É um perigo esse negócio.” “Não é não.” “Ah, com filho todo cuidado é pouco.” Respiro. “Verdade”.

Silêncio.

E o mala: “Cadê a mãe dessa criança?”

“Eu matei. Sufocada. Quem mandou cochilar no canguru?”

Gregorio Duvivier
É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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