Almanaqueiras: ou não queiras.

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terça-feira, 20 de março de 2018

“Acordei, abluí-me e aleitei-me” era coisa de jornalista metido a literato.

Carolina de Jesus
Publicado há 60 anos, diário de uma favelada marcou o jornalismo brasileiro

Alvaro Marechal

Carolina Maria de Jesus, em 1958 na favela do Canindé, às margens do rio Tietê, em São Paulo, onde viveu até lançar o livro 'Quarto de Despejo'

O repórter Audálio Dantas sugeriu a pauta: uma favela crescia no bairro do Canindé, às margens do Tietê, e começava a incomodar por exibir a miséria até então escondida na periferia. Ficou acertado com o chefe de reportagem Hideo Onaga que Audálio ficaria pelo menos uma semana dedicando-se ao assunto. Em três dias ele voltou com a missão cumprida. E não precisou escrever uma linha sequer.

A manchete que a “Folha da Noite” publicou no dia 9 de maio de 1958 resumia a história: “O drama da favela escrito por uma favelada”. Carolina Maria de Jesus mantinha um diário íntimo, narrando o que via ao seu redor: fome, violência, alcoolismo, a dificuldade em criar os três filhos pequenos trabalhando como catadora de papel.

Em 1960 o relato saiu em livro, com o título de “Quarto de Despejo”. Vendeu 100 mil exemplares na primeira semana e transformou Carolina em celebridade de consumo.

Fotos na “Time”, na “Life” e na “Paris Match”; um inesquecível voo de avião; hospedagem no Copacabana Palace; uma sobremesa flambada em meio a altas chamas no Antonio’s, o bar da moda; elogios de Clarice Lispector e Alberto Moravia.

Muita gente duvidava da autenticidade da obra, e o repórter chegou a ouvir de alguns colegas: “Rapaz, você teve um trabalhão para inventar o livro da negra”. O crítico Wilson Martins garantia que o texto não podia ser de Carolina. “Acordei, abluí-me e aleitei-me” era coisa de jornalista metido a literato.

Carolina morreu esquecida em 1977. “Quarto de Despejo” ficou. Tom Farias conta sua luta para ser reconhecida como escritora em “Carolina: Uma Biografia”, lançamento nesta terça (20) na Travessa de Ipanema. De tudo, o que acho mais fantástico é que, em 1958, não existia internet, e um jornalista pôde sair às ruas, gastar sola de sapato e sujar a barra da calça atrás de uma reportagem.

Alvaro Costa e Silva
Trabalha como jornalista desde 1988. Já foi repórter, redator, editor, colunista.

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