Almanaqueiras: ou não queiras.

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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Por que um clássico não se renova?

POR QUE O FREVO NÃO SE RENOVA?

Urariano Mota



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“Por que o frevo não se renova?”, me perguntou na semana passada o amigo Joaquim Ancilon no Pátio de São Pedro, enquanto ouvíamos frevos de bloco. Joaquim é um professor, um homem honesto, mas nem por isso despreza perguntas de provocação. E em que momento oportuno ele fez a pergunta! No mesmo instante, lá no palco a senhora Lilia, ex-presa política, cantava:

“Felinto, Pedro Salgado,
Guilherme, Fenelon,
Cadê teus blocos famosos?
Bloco das Flores, Andaluzas,
Pirilampos, Apois-Fum,
Dos carnavais saudosos?

Na alta madrugada
O coro entoava
Do bloco a marcha-regresso
Que era o sucesso
Dos tempos ideais
Do velho Raul Morais:
‘Adeus, adeus, ó minha gente,
que já cantamos bastante..’
E Recife adormecia
Ficava a sonhar
Ao som da triste melodia….”

Não sei se foi o calor do uísque ou da raiva diante da pergunta, não sei se foi a lembrança da fase de ouro do frevo, com Nelson Ferreira, Capiba, Levino Ferreira, Edgard Moraes, João Santiago, não sei se foi a recordação do que um dia escrevemos sobre o gênio de Nelson Ferreira, quando dissemos que esses compositores de frevo de Pernambuco tinham o dom de falar do sentimento da gente com uma voz que atravessava a parede de uma sala vizinha. Esses compositores se referiam ao que sentimos com tamanha intimidade que são essa maravilha ainda não descoberta: um parente amigo da infância com quem não brigamos, que tem crescido em nosso afeto, nutrido no tempo incessante… não sei. Mas deve ter sido uma mistura de tudo isso, porque à pergunta

– Por que o frevo não se renova?

Respondemos com outra:

– Por que Dante não se renova?

Por que um clássico não se renova? Por que não temos mais A Divina Comédia? Por quê? As obras seminais, que fundam o nosso ser, não se renovam, não se encontram no mercado, não estão à venda. Estão para sempre, para a nossa reconstrução. A sua modernidade é a sua infindável permanência. A sua renovação é o seu dom de ser insubstituível. Mas ainda assim, ficamos pensando. Havia um travo de coisa ruim, de coisa que não está resolvida, na garganta, no peito. Está certo, viemos pensando, está certo, Nelson Ferreira hoje é impossível, ninguém mais, nunca mais será Nelson Ferreira, o grau de excelência que ele alcançou não se faz mais. Certo. Mas por que o frevo tem que ser somente à maneira e feição de Capiba, Nelson e Levino? Ora, se Dante não se renova, a poesia continua e continuará em outras faces que não a de Dante. Sim, e por que não? É impossível hoje algo como a Evocação número 1, é certo. É absolutamente improvável, absurdo, que se faça de novo Último Dia,.de Levino Ferreira. Mas o frevo acabou?

– Não. Todos os dias temos prova que não, em nossos dias, em nosso ser, nos novos intérpretes que vêm, alguns até bem jovens. Então… O frevo se renovou? Mas o que é mesmo renovar? – Certamente, não é repetir. Certo. Será algo então jamais visto, tão novo quanto seria um extraterrestre para o nosso convívio? E se assim for, como dizer que essa coisa jamais vista ainda é do mesmo gênero, do frevo? Ora. Então esse renovar deve com mais certeza aliar, resolver a tradição no presente. Há caminhos ainda não percorridos, a partir mesmo da tradição. Como pode ser visto com a orquestra Spok.

O maestro Spok vai na jornada das estrelas. Aquelas antecipações de Felinho ao executar Vassourinhas antes de 1950 passaram a ser retomadas pela orquestra de Spok, ao improvisar livre sobre a base da história do gênero, com liberdade, que sem ela nada se cria nem se transforma. Dele disse o maestro e compositor Clóvis Pereira: “A SpokFrevo, afinadíssima e conduzida por Spok, é uma orquestra formada por jovens de irrecusável talento musical e nos mostram que o frevo está mais vivo do que nunca, evoluindo cada vez mais”.

Que dizer, então, de J. Michiles, autor de muitos sucessos com Alceu Valença? Me segura senão eu caio, Diabo Louro, Roda e Avisa. Que dizer do Maestro Forró, da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério? Que dizer da civilização de Antonio Nóbrega, que dança, toca, canta e distribui o gênio do frevo em todo o mundo? Que dizer de Silvério Pessoa, que este ano arrebentou na Praça do Marco Zero? O mundo continua, a vida segue, apesar da saudade que deixa na gente Nelson Ferreira em todos os carnavais.

Foto: Samuca/Arte sobre foto da internet

*Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do autor.

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