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quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Fora dos palcos, a ideia de que mulheres tenham desejo sexual é descartada

O desejo das mulheres e o funk

Contardo Calligaris




Fora dos palcos, a ideia de que mulheres tenham desejo sexual é descartada

Na sexta passada fui a Atibaia, para assistir ao show de Anitta e do Nego do Borel, no Amuse Hall.

Sempre gostei de black music, desde a primeira vez que escutei James Brown. E gosto da banda Funk Como le Gusta. Mas não sou um grande fã do funk brasileiro-carioca –muito bate-estaca eletrônico para meu gosto.

Na sexta, aliás, na espera do Nego do Borel e de Anitta, tivemos direito a três horas de eletrônica em volume de rave. Quando Anitta chegou, eu já estava surdo. (Sobre o funk no Brasil, cf. "Funk", de J. Bezerra e L. Reginato, Panda Books).

Enfim, o show foi um mico; o auditório meio vazio minou o entusiasmo dos artistas: Anitta pediu perdão por não descer rebolando até o chão porque estava cansada –e a voz dela foi playback.

Tanto faz. Eu queria ver Anitta ao vivo porque o "Show das Poderosas" e "Vai Malandra" me pareciam contribuições significativas à nova onda feminista.

Nos anos 1980-90, Andrea Dworkin, uma feminista radical, era convencida (pelo que ela lembrava das experiências de seu próprio passado) de que, para uma mulher, relacionar-se com um homem é sofrer um estupro.

Desconfio dos que propõem doutrinas de valor universal a partir dos arranjos singulares que eles ou elas encontraram para conviver com os percalços de suas vidas. Desse ponto de vista, Dworkin não é diferente de (santo) Agostinho: ambos acabaram odiando o sexo por razões neuróticas próprias. Tudo bem. Só não é caso de querer que todos os outros odeiem também.

Não tenho simpatia pela posição de Dworkin porque a vontade de negar o desejo sexual feminino está no âmago da misoginia (vergonha e culpa para despudoradas e ninfomaníacas).

Será que a música e quem sabe o exemplo de Anitta e outras podem "empoderar" algumas meninas? Será que, graças a Anitta e ao funk, elas podem encontrar a coragem e a liberdade para manifestar seu desejo sexual?

Talvez. Mas será que os meninos do funk entendem que as meninas também desejam?

No sábado, converso com P., um jovem de Jundiaí que foi a Atibaia para assistir ao show. Ele é fã do Nego do Borel (pela história de superação do artista –reza a lenda que ele já foi traficante) e mais ainda ele é fã de Anitta, "pela liberdade dela", "pelo que ela se permite dizer e fazer".

No entanto, quando a gente passa a conversar sobre as meninas que frequentam os bailes funk, não sobra nada da ideia de liberdade que ele admira em Anitta. Para P., as meninas que se deixam "foder" nos bailes são vítimas dos machos (inclusive dele mesmo, confessa) que as enganam e se aproveitam delas, graças à bebida, ao momento etc.: as meninas vêm para encontrar um namoro e acabam sendo "usadas".

Sugiro a P. que talvez os meninos e ele mesmo estejam sendo usados pelas meninas, que, às vezes, podem muito bem estar a fim de transar –e não de namorar. Mas ele: isso não, os homens são assim, não as meninas. P. parece acreditar no MC Diguinho: "Taca bebida, depois taca pica e abandona na rua". Tanto P. quanto MC Diguinho não se deram conta de que as meninas podem estar a fim de sexo e que os abandonados no fim talvez sejam eles.

A sexualidade feminina é um tema central do funk carioca (como diz a extravagante Inês Brasil: "Penso nisso 24 horas"), mas a doutrina do funk parece valer só lá no palco, para as cantoras: aqui na pista, a hipótese de que exista um desejo sexual nas mulheres continua apavorante e descartada.

No fim de "A Evolução do Machismo" (Engenharia das Letras, 2005), Giorgio Gambirasio resumia as "diretrizes reprodutivas" (sobretudo à luz da psicologia evolucionista, que, por princípio, tenta entender o comportamento a partir das necessidades da espécie e não dos desejos dos indivíduos).

Os homens, escrevia Gambirasio, tentam espalhar sua carga genética tendo relações sexuais com o maior número de mulheres jovens e saudáveis. Mas também, "em relação a algumas mulheres de interesse", eles devem "1. Desenvolver cuidados e dar suporte, tanto a elas como aos filhos delas. 2. Procurar (...) impedir o acesso sexual de outros homens às mulheres de interesse. 3. Procurar por todos os meios disponíveis restringir a liberdade das mulheres de interesse".

De fato, em alguns milênios de história, os homens quase conseguiram restringir a liberdade sexual das mulheres sem precisar prendê-las. Bastou convencer a todos (inclusive às mulheres) de que elas não têm desejo sexual algum.

Contardo Calligaris
Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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