Almanaqueiras: ou não queiras.

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segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

O carnaval, festa do “me esqueçam”, vira a festa do “me encontrem, me vejam, me curtam”

O azeite de dendê no carnaval


Luiz Antonio Simas



O carnaval, festa do “me esqueçam”, vira a festa do “me encontrem, me vejam, me curtam”

Em certa ocasião, matutando no ócio sobre a Festa da Penha e as artimanhas de sacralizar o profano e profanar o sagrado nas escadarias da igreja carioca, resolvi ensaiar uma traquinagem conceitual: desisti de trabalhar os conceitos de apolíneo e dionisíaco para falar de impulsos fundamentais do homem, ordem e caos, festa e labuta, inversão e controle e outros salamaleques. Para todos os efeitos, passei a usar os conceitos de exusíaco e oxalufânico. É a eles que recorro para pensar o carnaval.

O carnaval de rua é exemplarmente exusíaco. Exu é aquele que vive no riscado, na brecha, na casca da lima, malandreando no sincopado, desconversando, quebrando o padrão, subvertendo no arrepiado do tempo, gingando capoeiras no fio da navalha. Exu é o menino que colheu o mel dos gafanhotos, mamou o leite das donzelas e acertou o pássaro ontem com a pedra que atirou hoje; é o subversivo que, quando está sentado, bate com a cabeça no teto e em pé não atinge sequer a altura do fogareiro. Ele é chegado aos fuzuês da rua. Adora azeite de dendê. Mas não é só isso e pode ser o oposto a isso.

Um longo poema da criação diz que, em certa feita, Exu foi desafiado a escolher, entre duas cabaças, qual delas levaria em uma viagem ao mercado. Uma continha o bem, a outra continha o mal. Uma era remédio, a outra era veneno. Uma era corpo, a outra era espírito. Uma era o que se vê, a outra era o que não se enxerga. Uma era palavra, a outra era o que nunca será dito.

Exu pediu uma terceira cabaça. Abriu as três e misturou o pó das duas primeiras na terceira. Balançou bem. Desde este dia, remédio pode ser veneno e veneno pode curar, o bem pode ser o mal, a alma pode ser o corpo, o visível pode ser o invisível e o que não se vê pode ser presença. O dito pode não dizer e o silêncio pode fazer discursos vigorosos. A terceira cabaça é a do inesperado: nela mora a cultura.

Gosto do carnaval de rua e das libações comandadas por Exu. Sou adepto da subversão pela festa. Carnaval de rua é possibilidade: pode ser festa de inversão, confronto, lembrança e esquecimento. É período de diluição da identidade civil, remanso da pequena morte, reino da máscara, fuzuê do velamento necessário. Eventualmente, sai porrada.

O carnaval exusíaco é o do não endereço, do rumo perdido, da rua esquecida, da esquina incerta. Em tempos de escancaramento das redes sociais, tem gente que quer ser encontrada no carnaval. É um tal de dizer “onde estou”, “qual é a minha fantasia”, “olhem como estou me divertindo”, “que foto bacana”. Brincar é o de menos; fundamental é que as pessoas saibam, em tempo real, que o folião está brincando. Na rua, espaço de subversão do cotidiano, a folia deveria ser o mar aberto do ébrio pirata de nau sem rumo. O carnaval, festa do “me esqueçam”, vira a festa do “me encontrem, me vejam, me curtam”. Para alguns, é a festa do “me patrocinem”. Sinal dos tempos e despotência da força exusíaca do babado. Sem dendê, a rua morre. Olho vivo, rapaziada.

Desfile de escola de samba, cada vez mais cheio de regras, é carnaval oxalufânico. Oxalufan é o orixá que tem como positividade a paciência, o método, a ordem, a retidão e cumprimento dos afazeres pré-determinados. Tudo que é contrário a isso representa a negatividade que pode prejudicar seus filhos. Diz um mito de Ifá que, quando se desviou da missão a ser executada e tomou um porre de vinho de palma, Oxalufan quase comprometeu a própria tarefa da criação do mundo. Em outra ocasião, quando também tentou agir por instinto e teimosia, não seguindo a recomendação do oráculo e não dando oferendas para Exu, Oxalufan foi preso ao fazer uma viagem, acusado injustamente pelo furto de um cavalo. Curtiu uma cana de sete anos. Deve evitar o azeite de dendê, que o tira do prumo.

O problema é que esse perfil oxalufânico anda excessivo entre as escolas de samba. A disciplina, a regra, o engessamento dos desfiles, o controle rígido das performances, pode representar a perda da capacidade de renovação e o descolamento entre as agremiações e a cidade. Oxalufan precisou de Exu para cumprir a sua missão na criação do mundo.

Alguma dose de oxalufânico pode fazer bem ao que é exusíaco; contanto que não o domine e impeça seu movimento. Alguma dose de exusíaco pode fazer um bem enorme ao que é predominantemente oxalufânico, para que ele se movimente. Quando um princípio, todavia, prevalece no terreno do outro e desequilibra a vitalidade daquela determinada potência, a chance de a vaca ir para o brejo é grande. Saber a medida certa do dendê é o nosso desafio na receita momesca. Carnaval, como diria o Seu Zé Pereira, é a vida.

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