Almanaqueiras: ou não queiras.

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sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

"Ele, de forma bem sucedida, evitou ser adulto sem continuar a ser criança".

Recusar tanto tornar-se adulto quanto continuar criança é nossa única opção - 

Vladimir Safatle 



O filósofo alemão Theodor Adorno escreveu uma vez sobre seu antigo professor de composição musical, Alban Berg: "Ele, de forma bem sucedida, evitou ser adulto sem continuar a ser criança".

Dificilmente, encontraríamos uma descrição melhor a respeito da capacidade que alguns desenvolvem de constituir suas vidas a partir da experiência da singularidade.
Pois as singularidades sempre pedem a construção desses espaços impossíveis nos quais nenhuma definição prévia parece funcionar muito bem. Espaços nos quais as dicotomias até então vigentes parecem perder seus objetos.
Berg empenhou-se, de forma contínua e sistemática, em não ser adulto, em recusar a gravidade do corretor de seguros, a destreza do gerente de sua própria vida. Mesmo sua música sempre terá algo da criança que apenas em aparência segue as regras, que constrói como se quisesse, na verdade, destruir.

Uma certa perversão que consiste em fazer dos trejeitos do adulto a expressão de uma criança e de fazer do olhar da criança a expressão escondida e premeditada do adulto.

Não é difícil sentir como um gesto de recusa do tornar-se adulto parece provocar, em alguns, certa repulsa moral. Aprendemos a conjugar, em um movimento que parece fundir as peças, emancipação, maioridade, maturidade e liberdade.

Recusar-se a ser adulto equivaleria, neste sentido, a não aceitar a liberdade e suas responsabilidades, a não ouvir a voz que nos incita a conformar nossas vidas aos padrões de socialização e de ação que temos atualmente à nossa disposição. Como se a liberdade fosse indissociável da capacidade de ser reconhecido como capaz de agir a partir de sistemas de normas e regras que fundamentam modos partilhados de vida em idade adulta.

Daí porque normalmente vemos como não imputáveis, não responsabilizáveis, aqueles que consideramos não livres, como os loucos e as crianças. Isto apenas mostra como nunca houve moral sem psicologia. Há uma psicologia na base da moral, muitas vezes uma psicologia do desenvolvimento que acaba por ser naturalizada.

Mas é certo que as normas sociais funcionam não apenas definindo seus padrões de conduta suposta. Elas funcionam também organizando as formas da resistência contra elas. Uma norma realmente funciona quando define, ao mesmo tempo, o que eu devo fazer e como devo recusar e revoltar-me contra o que devo fazer. Ou seja, ela enuncia, ao mesmo tempo, a lei e as formas da transgressão.

Por isto, muitas vezes, a transgressão já é um fenômeno interno à lei. Não há sociedade que, de forma tácita, não regulamente suas transgressões, retirando delas a força de realmente abalar os modos de reprodução atual da vida.

Daí porque de nada adiantaria recusar-se a ser adulto para continuar sendo criança, como se fosse o caso de opor a maturidade à pretensa espontaneidade perdida das crianças.
No entanto, essa espontaneidade é também uma produção da vida adulta. Ela é uma projeção daquilo que a vida adulta não é, algo que deve ser representado enquanto irremediavelmente perdido e só recuperável sob a forma da regressão. Ela é sua transgressão administrada.

Conhecemos figuras que, ao invés de compreender a liberdade como autonomia conquistada depois em um processo de maturação, definem a liberdade como espontaneidade própria a algo que nos remete à infância.

Mas, longe de serem opostas, talvez estas visões sejam complementares e ambas equivocadas. Por isto, a única escolha possível é não fazer escolha alguma, é recusar tanto o tornar-se adulto quanto o continuar criança.

Neste horizonte que parece indefinido, as singularidades produzem seus arranjos inesperados. Mas uma sociedade que não sabe como lidar com eles irá procurar empurrar seus sujeitos a operar no interior de uma polaridade entre adulto e criança que, no fundo, é apenas a maneira mais complicada de continuar no mesmo lugar. Por isto, ela irá preferir continuar a não ouvir Alban Berg.

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