Almanaqueiras: ou não queiras.

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quinta-feira, 30 de novembro de 2017

"O brasileiro gosta de votar".

'Brasil é raro país onde juiz discute em público', diz ex-presidente do STF  


Ana Luiz Albuquerque


PORTO ALEGRE, RS, BRASIL, 17-11-2017, 16h00: Entrevista com Jose Neri da Silveira, 85, em seu escritorio em Porto Alegre. Jose Neri e ex-presidente do STF. (Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress, PODER) ***EXCLUSIVO***

Aos 85 anos, José Néri da Silveira fala com clareza e detalhes sobre os fatos que presenciou durante meio século de serviços públicos prestados.

A ficha é extensa: foi presidente do Supremo Tribunal Federal (1989-1991), do Tribunal Superior Eleitoral (1985-1987 e 1999-2001) e do Tribunal Federal de Recursos (1979-1981).

Em sua primeira presidência no TSE, foi responsável pela informatização da Justiça Eleitoral, incluindo o recadastramento nacional dos eleitores. Na segunda, comandou a introdução da urna eletrônica em todas as zonas eleitorais.

À Folha o ex-ministro diz ter chegado a uma conclusão após todos esses anos: "O brasileiro gosta de votar".

Folha - O senhor assumiu a presidência do STF em 1989 defendendo o combate à morosidade na Justiça. O quanto avançamos?

José Néri da Silveira - Avançamos muito. Houve um fato novo, a informatização. Isso tem, sem dúvida, colaborado para uma melhoria no serviço Judiciário. O grande problema é em decorrência da Constituição de 1988, do ponto de vista de se manter a morosidade Mas acho que foi um benefício pela abertura que a Constituição trouxe, a maior possibilidade de acesso de todos à Justiça, a criação de órgãos como a Defensoria Pública, que viabilizou camadas imensas da sociedade, que antes não tinham acesso à Justiça porque não tinham condições de pagar as despesas judiciais A carga de processos que se verifica no Judiciário é de um aumento constante.
O problema da morosidade não se resolveu, apesar do esforço que os juízes realmente fazem.

Em 1986, o senhor ficou responsável pelo recadastramento nacional dos eleitores. Como foi este processo?

A gente não tinha ideia exata de quantos eleitores o Brasil tinha. Qual era o eleitorado que iria votar para eleger a Constituinte? Sessenta e nove milhões de eleitores. Mas sempre penso no que foi aquele episódio de 1986. Como que o povo no país inteiro aceitou Formavam filas intermináveis, pude verificar com meus próprios olhos. Um senhor muito idoso, talvez bem mais idoso do que sou hoje, estava esperando sua vez. Eu disse: "Mas o senhor não está obrigado pela lei a retirar seu título". Ele disse: "Não, doutor, enquanto minhas pernas aguentarem eu fico aqui, porque quero ter meu título de cidadão".

Havia uma expectativa no país de uma coisa nova a ser realizada. Eu tinha uma certeza de que faríamos aquilo, porque eu sentia, no primeiro semestre de 1986, que havia um entusiasmo do povo, tudo parecia que tinha melhorado. Todo mundo queria colaborar, foi uma situação coletiva que se estabeleceu. A imprensa ajudou muito. Os jornalistas iam sempre ao TSE para saber como estava o recadastramento.

De uma maneira geral, nosso espírito cívico é muito grande. Eu acho que o povo brasileiro gosta de votar. Na campanha eleitoral sempre se animam. Mesmo que [o voto] não fosse obrigatório, não acredito que a abstenção fosse muito maior do que acontece normalmente.

Mesmo com a crise política?

Sem dúvida a crise política pode arrefecer esse entusiasmo cívico que o povo tem. Mas acho que estamos hoje numa fase em que a participação do povo no processo eleitoral vai se fazendo cada vez mais acentuada e intensa. De tal maneira que tivemos há alguns anos movimentos de rua que eram movimentos do povo. Significa que nosso povo está com o espírito cívico destacado.

Também na sua presidência no TSE foram introduzidas as urnas eletrônicas

Sim, começaram progressivamente, a partir da eleição de 1994, em determinadas zonas eleitorais. Isso dependia da fabricação das urnas, era uma primeira experiência. Dá certo? É de confiança? Isso tudo foi testado e muito discutido. Todos os testes feitos até hoje nunca desmentiram a segurança da apuração do voto.

Mas alguns movimentos defendem a volta do voto impresso

Sempre, sempre. Havia um grupo de engenheiros que não acreditava, mas nunca provaram efetivamente que fosse possível fazer fraudes.

E nunca tivemos nenhum caso. Cada unidade é isolada, funciona singularmente. A seção eleitoral 38 não se comunica com a 39. Cada uma é apurada isoladamente, é muito difícil fazer uma cadeia de fraudes. Mesmo porque as urnas são devidamente testadas antes da eleição, substituídas por urnas novas, etc. Há um cuidado de natureza técnica muito grande.

Vivemos, há alguns anos, um momento de judicialização da política. Hoje o brasileiro sabe quem são os ministros do STF, opinam sobre as decisões, criticam... Os magistrados estão mais expostos?

Sem dúvida. Antes do televisionamento das sessões, os ministros quase não eram fisicamente conhecidos. Os juízes passaram a ter uma visibilidade muito grande. Não sou contra a televisão, acho que possibilita o povo conhecer como a Justiça funciona. Mas acho que isso não modificou o sentido de independência do Supremo. Pode até ocorrer que o juiz tenha se sentido com um dever mais intenso em casos importantes, de pronunciar seu voto, de não simplesmente dizer "estou de acordo com o relator".

Recentemente assistimos a uma discussão acalorada entre os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso. Esse tipo de situação já acontecia quando o senhor fazia parte da Corte ou é uma consequência dos tempos atuais?

O problema todo é da visibilidade hoje. Às vezes, como seres humanos, podem avançar nas palavras, na discordância. Os temperamentos são diferentes. Mas isso sempre houve nas decisões dos colegiados. Discussões muito acaloradas.

O STF tem casos, desde o seu início, de graves discussões entre os membros no exame das causas. Não é de causar espécie, é que não estamos ainda habituados. O Brasil é um dos poucos países em que o juiz discute em público. Sou favorável ao sistema brasileiro.

Em outro episódio recente, houve uma queda-de-braço entre o Judiciário e o Legislativo, em torno de uma determinação do STF para afastar o senador Aécio Neves (PSDB). O Supremo deveria ter interferido?

Esse problema de uma eventual proteção que eles [os parlamentares] têm decorre da necessidade de que a Casa representa o povo. São representantes do povo. É preciso que a Casa Legislativa diga se convém ou não afastá-lo, é um juízo político. Isso não quebra o sistema, a própria Constituição prevê a confirmação do afastamento do membro, definitiva ou temporária.

Se [o julgamento] se arrastar por seis anos... O povo o elegeu para ser seu representante E agora é afastado? Vou impedir o exercício da vontade do povo na representação dele. É um negócio mais complicado. Não quer dizer que a decisão judicial foi revista no seu mérito. Tanto que ele não fica perdoado, no momento que deixar de ser deputado ou presidente Não foi absolvido. O próprio Supremo reconheceu isso nas últimas decisões.

O brasileiro procura no STF a confiança que perdeu nos políticos?

Difícil de responder, porque não sei até onde perdeu a confiança nos políticos. Estamos vivendo, sem dúvida, uma crise na representação e o Judiciário tem sido convocado para decidir sobre assuntos, por sua natureza, políticos.



Não pode negar Justiça, tem que decidir. O povo confia no Supremo Tribunal Federal. O fato de querer que o STF se manifeste, é um sinal de confiança de que aquela instituição vai resolver bem.

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